São Paulo, terça-feira, 24 de agosto de 2004

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FREDERICO VASCONCELOS

Obras públicas

Todo período eleitoral é rico em lançamentos de obras de marketing político. São aqueles tratados que, grosso modo, misturam futurologia e ventriloquia política: especialistas interpretam as pesquisas de opinião e orientam os candidatos a falar nos debates e programas eleitorais -aparentando grande convicção- aquilo que os eleitores gostariam de ouvir.
A livraria Cultura, na avenida Paulista, em São Paulo, deu inspirada contribuição a esse faz-de-conta. Expôs na vitrine, ao lado de meia dúzia de novos livros de marketing político, obras clássicas sobre antigas artes de candidatos e governantes: como iludir os incautos contribuintes e como melhor usar a máquina pública para engordar as fortunas privadas.
Próximo a uma obra reeditada sobre persuasão eleitoral, via-se o "Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira (1608-1697). O livro transcreve texto de santo Agostinho em que um pirata ("ladrão pequeno") diz a Alexandre Magno: "O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza".
É recomendável que os candidatos meditem sobre as várias interpretações desses textos. Há passagens dedicadas à responsabilidade de quem rouba e à de quem nomeia aquele que rouba. Cita-se o que é praticado "em todos os reinos do mundo". Ou seja, "em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno".
Supondo que o virtual candidato acreditasse mesmo que poderia "chegar lá", a livraria, silenciosamente, propunha a leitura de "Como Tirar Proveito de seus Inimigos", de Plutarco (66-12 a.C.). Muito antes da era cristã, já havia manuais ensinando a distinguir os inimigos e a frustrar as ciladas dos bajuladores.
Talvez pensando no eleitor entediado com a propaganda eleitoral da televisão e com os debates cronometrados, o comerciante de livros sugeria discretamente a leitura do "Código dos Homens Honestos", de Honoré de Balzac (1799-1850). O livro também é conhecido como "a arte de não se deixar enganar pelos larápios" (e pelos burocratas e advogados, segundo acrescentam algumas versões).
Entre uma e outra brochura sobre estratégias para ganhar eleições, a vitrine oferecia "A Arte de Furtar", um clássico da literatura portuguesa da fase barroca (século 18) dedicado a formas de expropriação tão atuais, como suborno, superfaturamento e corrupção (a edição exposta tem apresentação do escritor João Ubaldo Ribeiro).
E por falar em virtuais corruptos, a seleção literária destacava "Da Geração e da Corrupção", de Aristóteles (384-322 a.C.), cometendo aí, talvez, um pecadilho. Aparentemente, o livro compunha a seleção mais pelo título do que pelo conteúdo. A obra filosófica trata da corrupção e da geração como elementos do movimento contínuo no estudo sobre física e composição do universo. Contudo, assim como os candidatos geralmente não entregam o que prometem, não se há de cobrar do livreiro rigorosa coerência em todos os discursos apresentados.
Infelizmente, a divertida e didática exposição durou poucos dias. Foi substituída pela trivial oferta de best-sellers, os livros mais vendidos da semana. Não se sabe se houve desinteresse do público pelas estratégias dos marqueteiros políticos. Ou se a corrupção e o engodo, de tão generalizados, já não despertam a curiosidade de leitores e eleitores.


Frederico Vasconcelos é repórter especial. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Roberto Mangabeira Unger, que escreve às terças-feiras nesta coluna.


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