São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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Ética e salvamento de bancos

ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO


O que justifica usar bilhões de dólares dos contribuintes para resgatar instituições que perderam fortunas com operações especulativas?

RECENTEMENTE , um jornalista me perguntou como se poderia avaliar, do ponto de vista ético, os programas de salvamento de intermediários financeiros. O que justificaria usar bilhões -agora trilhões- de dólares dos contribuintes para resgatar instituições bancárias que perderam fortunas com operações especulativas. Reconheço que a pergunta me pegou de surpresa.
A resposta trivial é a existência de um risco sistêmico. As intervenções se justificariam para evitar o pior: uma quebradeira generalizada, com a paralisação de atividades produtivas e geração de elevado desemprego.
Mas o mesmo não se dá com qualquer setor econômico? A falência de uma empresa também gera desemprego -e não apenas na própria empresa, mas também em fornecedores e clientes ou revendedores. O que diferencia o setor financeiro? O que diferencia um intermediário financeiro, como o próprio termo indica, é que ele intermedeia recursos financeiros de outras pessoas ou outras empresas. Ele não aplica ou especula só com recursos próprios, mas majoritariamente com recursos de terceiros. Não é com o seu dinheiro, mas com o dinheiro dos depositantes.
Nessas circunstâncias, se um banco for à falência, quem perde não são só os donos dos bancos ou seus acionistas, mas também os milhares de cidadãos que de boa-fé colocaram suas "economias" nas variadas formas de depósitos e aplicações, de depósitos à vista e cadernetas de poupança a sofisticados instrumentos financeiros, como derivativos e "hedge funds".
Dessa forma, uma crise bancária ameaçando a solidez de todo o sistema se torna um problema de economia popular, pois, se a crise não for detida, milhões de pessoas que, diretamente ou por meio de fundos de pensão, conseguiram realizar alguma forma de poupança verão seus patrimônios financeiros evaporar.
Portanto, é a defesa das economias dos milhões de poupadores, a esmagadora maioria composta de pessoas que absolutamente não especularam, que justifica eticamente os programas de socorro aos bancos e outras agências financeiras que realizaram fracassadas operações de alto risco.
A questão é que, nesse processo de recuperação financeira dos bancos, os responsáveis pelos problemas acabam sendo beneficiados.
E aqui reside o dilema moral e ético. Será possível salvar as finanças de milhões de depositantes e poupadores sem, concomitantemente, ajudar os que foram responsáveis pelos desacertos ou que irresponsavelmente especularam com o dinheiro alheio? Esse é o grande desafio dos programas e deve ser a linha mestra dessas políticas: salvar os depositantes, mas não os especuladores.
Nos casos noticiados de socorro nos EUA, os acionistas e credores dos bancos em dificuldades perderam quase todo o capital aplicado nas referidas instituições. Aparentemente, a regra exposta acima foi seguida.
Ao mesmo tempo em que a característica da intermediação financeira de aplicar recursos de outros justifica moralmente os programas de socorro, ela também exige que a atividade bancária seja criteriosamente regulada pelas autoridades governamentais.
Como a atual crise sobejamente demonstra, o setor financeiro opera baseado na confiança entre os participantes. Essa confiança é indispensável, pois existem informações assimétricas entre os diversos participantes desse mercado. Quem empresta recursos não tem conhecimento perfeito sobre a capacidade e real disposição do mutuário de pagar as obrigações. Apesar de alguma ou muita informação e garantias exigidas, sempre renasce a incerteza. É a confiança que em última instância faz o mercado financeiro funcionar.
Quando a confiança desaparece, o mercado financeiro totalmente se desarticula. É o que estamos vivenciando neste momento. A crise financeira só será contida quando a confiança entre os agentes for restaurada.
A confiança não é um bem ou um serviço que possa ser fornecido somente pelo livre jogo das forças de oferta e procura dos agentes privados.
Esse é o equívoco dos que defendem radical desregulamentação. Regras de conduta e, em especial, regras de prudência são necessárias, e eficiente supervisão por entidades governamentais é indispensável.
O mercado financeiro é como um cavalo fogoso e com muita energia.
Bem conduzido, ganha a corrida. Sem controle, joga o jóquei no chão.

ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO, 64, doutor em economia pela Universidade Yale, é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e presidente do Etco (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial). Foi secretário de Economia e Planejamento de São Paulo (1995 a 2002) e presidente do BNDES (1985 a 1988).



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