São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 2000

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Feliz Natal

CLÁUDIO HUMMES


Cristo veio salvar-nos das misérias materiais, espirituais e morais; para a comunhão junto dele na ressurreição final


Chegou o Natal, a festa cristã mais querida do povo. Renova-se o espírito natalino, síntese dos sentimentos que parecem transbordar das narrativas evangélicas sobre o nascimento de Jesus. Mesmo separados em igrejas diferentes, os cristãos no mundo inteiro celebram o Natal como grande e fundamental dom que Deus fez de si mesmo a nós, para nossa realização divina, conforme a bela proclamação do apóstolo Paulo em sua carta aos gálatas:
"Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial. E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o espírito do seu filho, que clama: Abba, Pai! De modo que já não és escravo, mas filho. E, se és filho, és também herdeiro, graças a Deus" (4,4-7).
O texto justifica bem a alegria do Natal. Em Cristo, filho de Deus encarnado, tornamo-nos filhos e herdeiros do mesmo Pai. O apóstolo preserva o termo aramaico Abba do vocabulário familiar, que poderia ser traduzido como "meu pai querido".
O Natal anuncia nossa vocação divina, porque esse acontecimento de Deus-entre-nós ordena-se a que nós aconteçamos em Deus. Na mais autêntica tradição da igreja, o Natal é sintetizado teologicamente no axioma: o filho de Deus se fez homem para tornar os homens filhos de Deus. Santo Atanásio ousou afirmar: "O filho de Deus se fez homem para nos fazer Deus". E o grande teólogo Tomás de Aquino retoma essa linguagem simbólica: "O filho unigênito de Deus, querendo-nos participantes de sua divindade, assumiu nossa natureza para que aquele, que se fez homem, dos homens fizesse deuses" (Op 57). O acolhimento dessa revelação enriquece a fé com a dimensão de alegria e júbilo, essenciais na celebração do Natal, como profetizou a mãe do menino em seu cântico do magnificat e como experimentaram os pastores ao ouvirem o anjo do céu: "Eu vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: nasceu-vos hoje um salvador" (Lc 2,10).
O apóstolo João, salientando fortemente a divindade de Jesus, evoca o Natal como manifestação da grandeza infinita de Deus entre nós: "O Verbo era Deus... e o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como filho único cheio de graça e verdade" (Jo 1,14). Nele está a essência do Evangelho que é amor: "Nisso manifestou-se o amor de Deus por nós: Deus enviou seu filho único ao mundo para que vivamos por ele" (1 Jo 4,9). Ele é o abraço substancial de reconciliação entre Deus e os homens: "O Pai enviou o seu filho como o salvador do mundo" (1 Jo 4,14) e Jesus confirma, ao dizer: "Ninguém vem ao Pai a não ser por mim" (Jo 14,6).
O evangelista Lucas enfatiza a intervenção divina na concepção e nascimento de Jesus, ao passo que Mateus sublinha a realização das promessas do Antigo Testamento. Ambos, porém, concordam em numerosos pontos de suas narrativas. É no tempo do rei Herodes que um anjo anuncia a concepção e o nascimento de Jesus a Maria, virgem e noiva de José, da descendência do rei Davi. Isso, antes de coabitarem. A concepção de Jesus acontecerá por obra do Espírito Santo, sem que nela José se envolva. Jesus será verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Isso ilumina o fato de que ele nasce, por um lado, por obra do Espírito Santo e, por outro, de uma mulher, Maria.
Nos dois evangelistas, o menino é identificado como salvador, recebe do céu o seu nome e nasce em Belém de Judá depois que José e Maria passam a viver juntos. Mais tarde, vão morar em Nazaré.
Além desses tópicos, Mateus estende aos pagãos, na figura dos magos, o oferecimento da salvação e relaciona o menino com os sofrimentos de seu povo, nos episódios do massacre dos inocentes, do exílio no Egito e da volta humilde a Israel. Lucas enfoca o clima de alegria, a participação das mulheres, o acolhimento do menino no templo de Jerusalém por Simeão e Ana, o anúncio aos pobres representados pelos pastores.
O Natal nos convida a refletir e a agir. Deus se fez criança e nos recorda as responsabilidades que temos para com as crianças e os adolescentes. Pelos olhos do Menino Deus, todas as crianças nos olham com ternura e com apelo. Apelo, porque são indefesas e precisam de nosso amor e de nossos cuidados. Na verdade, não as tratamos de modo devido em nosso país e em nossa cidade. Não reagimos com medidas suficientes e eficazes diante das crianças de rua, dos tristes acontecimentos repetidos nas Febens, da falta de vagas escolares e de boas escolas, da evasão escolar, dos programas impróprios nas TVs e da droga no mundo infantil.
Convida-nos o Natal também para a solidariedade com os pobres, pois Cristo nasce pobre entre os pobres. Maria "deu à luz seu filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na sala" (Lc 2,7). Todos os sem-teto vêem-se representados em Maria e José, que não encontraram uma casa que os acolhesse, em Belém. Tiveram que arranjar-se num estábulo de animais domésticos. Moradia digna é direito de todo ser humano.
Cristo veio salvar-nos de todas as misérias materiais, espirituais e morais. Tornou-nos irmãos e, portanto, proclama a fraternidade, a solidariedade, a justiça social e a paz. Porém, acima de tudo, nos salvou para a comunhão junto dele na ressurreição final.
Dom Cláudio Hummes, 66, é arcebispo de São Paulo. Foi arcebispo de Fortaleza (CE) e bispo de Santo André (SP).


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