São Paulo, terça-feira, 24 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O terceiro setor no novo Brasil

EVELYN BERG IOSCHPE

A sociedade civil brasileira, que ao longo da última década do século vinha mostrando sinais animadores de resgate de sua importância através da estruturação do terceiro setor, surpreendeu o mundo ao eleger de forma tranquila e democrática seu primeiro presidente de esquerda. Não é pouco, quando se sabe que as elites costumam desenvolver sólidos mecanismos para se manterem no poder.
Considerando que suas reivindicações não receberam ouvidos nos oito longos anos da era fernandina, em que deixamos de crescer, deixamos de enriquecer e nossos pobres ficaram ainda mais longe do berço esplêndido, não é de todo surpreendente que essa guinada tivesse se dado de forma tranquila, contando inclusive com o apoio de setores tradicionais do empresariado.
Deste meu lado do mundo, o terceiro setor, o que interessa analisar é a potencial geração de capital social que podemos esperar. O Brasil, às voltas com os tumultos de um desenvolvimento econômico que, apesar dos sólidos fundamentos, vai aos trancos e barrancos, dando sempre a impressão de estarmos a um passo do abismo, tem um capital natural raro em sua potencialidade e sobretudo um capital humano que, vicissitudes à parte, mantém a crença num projeto de nação.
Só essa característica nos distingue, por exemplo, de nossos vizinhos argentinos, que vão chegar às eleições em breve sem candidatos que representem suas crenças e sonhos, até porque seu capital humano não foi capaz de forjar um sonho coletivo comum.
O Brasil deu mostras, na eleição de um ex-operário comprometido com a luta por um modelo de desenvolvimento voltado para as camadas pobres da população, de crença nas suas utopias. Este é um fenômeno que se vinha observando no fantástico desenvolvimento do terceiro setor, que numa década apenas conseguiu ancorar o que Coleman designou de "capital social".
Retrocedendo no tempo, vamos ver que no final dos anos 80 aquilo que se convencionou chamar de sociedade civil ainda estava do outro lado da mesa, isto é, os segmentos desenvolvimentistas do país desconheciam a pulsação quase subterrânea da sociedade civil. Empresas visam lucro e a política almeja o poder -este talvez fosse o resumo da ópera, enquanto a sociedade chafurdava na sua própria precariedade.
Uma década depois, empresas continuam visando o lucro, mas desenvolveram uma agenda de responsabilidade social; e os políticos aprenderam que é possível governar fazendo parcerias com a sociedade civil e, assim, tornar sua ação mais eficiente. O que poderia parecer apenas uma mudança de estilo é, de fato, uma tomada de posição que entende o tamanho de nosso déficit social e responsabiliza novos agentes sociais, gerando uma transformação profunda de comportamentos.


As elites foram obrigadas a enxergar seu entorno, entender o impacto da sua presença na comunidade e gerar a mudança


A consciência de que "assim não dá mais" oportunizou a inclusão de novos atores sociais, quebrando hierarquias que pareciam tão cristalizadas quanto as castas da antiga Índia. As elites foram obrigadas a enxergar seu entorno, entender o impacto da sua presença na comunidade e gerar a mudança.
Não é mais possível viver no país de faz-de-conta, no segmento "Bélgica" daquela "Belíndia" cunhada por um economista de então, até porque essa Bélgica ficou cada vez menor e mais encastelada em privilégios de difícil desfrute, e a Índia passou a se mostrar cada vez mais ameaçadora. A sociedade parece ter reconhecido que essas são metades da mesma laranja e que, se uma estiver podre, vai acabar fazendo a outra apodrecer também.
O ingresso das empresas na busca de soluções para o difícil social, portanto, não é apenas uma novidade a festejar por seu ineditismo, mas também por sua eficiência. Ao lançar um olhar mais agudo sobre essa realidade, o setor empresarial brasileiro conseguiu gerar soluções eficazes e que buscam escala, visando afetar as políticas públicas.
Quero falar aqui sobre esse novo conceito de "franquia social sem fins lucrativos", que gera capital social ao multiplicar benefícios. A Fundação Ioschpe foi pioneira na introdução do conceito para ampliar a repercussão de suas escolas técnicas instaladas em empresas, as Formare, hoje 38 unidades disseminadas pelo Brasil. Trata-se de um trabalho realizado por funcionários voluntários que educam, com orientação do Centro Federal de Educação Tecnológica do MEC, atingindo os alunos mais pobres das periferias urbanas.
A cada empresário que adere à iniciativa, gera-se capital social: o mesmo equipamento que já estava nas fábricas, o mesmo funcionário que também estava lá e a mesma periferia pobre de repente não são mais os mesmos, porque interagem, porque se tornam mutuamente responsáveis. É este novo senso de responsabilidade que o empresário brasileiro vinha evidenciando ao longo da década e que gerou um terceiro setor pujante e representativo em nosso país, que também mudou a agenda política, fazendo eleger o representante histórico dos que estavam "do outro lado".
O pacto que será celebrado a partir dessa nova realidade está por ser definido e depende de um mundo de fatores. O que parece irreversível é a consciência gerada de que não há um outro lado da mesa -ou, se há, ele é alternativo e mutável. Estamos, afinal, todos do mesmo lado. Lula vai começar a governar assentado sobre uma imensa novidade: nunca tantos estiveram do mesmo lado, querendo que dê certo.
Esse é o fermento com o qual se cria capital social, e vivemos um momento de esperança como poucos na história brasileira. O fim melancólico dos anos FH passam despercebidos ante a excitação pelo Ano Novo, vida nova que se anuncia.
Talvez o que perpasse a população, depois de oito anos de medidas provisórias ditadas de cima para baixo, seja a sensação de que, afinal, vamos poder desenhar o Brasil de nossos sonhos, o Brasil da utopia, um Brasil para todos os brasileiros.
O tamanho da esperança também é o tamanho da possibilidade da decepção. E a possibilidade da decepção desta sociedade civil articulada tem uma dimensão que, hoje, ninguém conhece. São muitos novos fatores sobre os quais há que refletir nesta virada de ano. Em 2003 não seremos os mesmos.

Evelyn Berg Ioschpe, 54, socióloga e jornalista, é presidente da Fundação Ioschpe e do Instituto Arte na Escola.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Eusébio Oscar Scheid: Experiência de Natal

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.