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São Paulo, quarta-feira, 25 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Contra o despotismo

ROBERTO ROMANO

Os improvisos do presidente Luiz Inácio da Silva primam pela arrogância e ausência do fundamental decoro. Na sua fala em Pelotas, ele retoma um vezo desastroso, não mais percebido desde que Fernando Collor referiu-se à própria masculinidade e louvou os apêndices roxos de seu organismo.
Agora, sabemos que outro presidente é macho, emprenha com rapidez, ostenta o título de pai da população. Os dois magistrados louvaram a sua pretensa superioridade individual. No mesmo fôlego, pioraram os preconceitos contra a sua região de origem. Sou dos que sempre se levantam quando ouvem calúnias contra o Nordeste.
O machismo presidencial reforça o preconceito. "A coisa que eu mais queria na minha vida, quando casei com a minha galega, era um filho. Ela engravidou logo no primeiro dia de casamento, porque pernambucano não deixa por menos. Pois bem, eu tive que esperar nove meses para nascer a criança e mais quase um ano para ela falar "papai"." E anota o jornalista presente ao evento de Pelotas: a certa altura o presidente, "quando olhava para a platéia, era como se estivesse vendo seus próprios filhos".
Não é a primeira vez que o inquilino do Planalto exibe tal arrogância.
O título autoconcedido de "pai" do povo brasileiro é um golpe contra a República democrática (nesta última, ninguém possui pátrio poder sobre os cidadãos, pois isso é despotismo) e traz as marcas de orgulho luciferino.
Como espero que o presidente ainda se afirme como estadista, nunca é demais recordar aos seus áulicos alguns elementos do Estado, exigidos para a grandeza do cargo. O presidente é "excelentíssimo". Existem pessoas sem nenhuma excelência pessoal, mas que recebem o tratamento porque representam a cidadania. Como no Brasil os cargos públicos tendem a passar de pai para filho (os Sarney, os Magalhães, os Tuma, o filho de José Dirceu), parece que os títulos pertencem aos indivíduos. E o orgulho faz com que nossos políticos se julguem "superiores" aos homens comuns. O foro privilegiado prova semelhante desvio.
A filáucia é fonte da arrogância que impõe separações entre os humanos. Para instaurar o Estado, pensa Hobbes, as hierarquias devem ser abolidas de imediato. O "Leviatã" explicita: "Não existe hierarquia entre os homens no estado de natureza". Assim, cada indivíduo deve reconhecer "o outro como seu igual por natureza. A infração deste preceito é o orgulho". Dessa lei, o autor avança para outra: ninguém pode exigir reservadamente nenhum direito que não se exija reservadamente aos outros. Agir como se os direitos vitais e cívicos fossem privados é arrogância. Esta última não conhece limites.
"Os que observam esta lei são o que chamamos homens modestos, os que a desobedecem, arrogantes. Os gregos chamam a violação desta lei "pleonexia", ou seja, o desejo de ter mais do que a parte adequada." Sem modéstia é impossível o Estado.


Agora, sabemos que outro presidente é macho, emprenha com rapidez, ostenta o título de pai da população


Em Espinosa ocorre outra visão do orgulho, mas o seu alvo também é permitir a vida política. "O orgulho é uma alegria nascida do fato de um homem ter de si mesmo uma opinião mais avantajada que o que seria justo." Apesar das diferenças entre Hobbes e Espinosa, ambos conceitualizam o orgulho como ruptura dos limites: "Os orgulhosos amarão a presença dos parasitas ou dos aduladores (...) e fugirão dos generosos, que têm deles uma opinião exata". O orgulhoso impede o Estado democrático porque propaga o culto de si mesmo e quebra os limites da razão. O arrogante "só se deleita com a presença dos que lhe mostram mais complacência e, de estúpido, o fazem doido".
Para que alguém seja estadista, precisa controlar a língua dos bajuladores.
Se ouve dizer que a sua luz esclarece o mundo, desconfiará do enunciado, para sua própria sanidade mental. O arrogante poderoso (que justifica seu agir pelo número de votos ou índices de popularidade) não deve olvidar a inconstância das massas. Collor também recebeu milhões de votos. As boas maneiras são imperativas. É preciso também escolher de qual Estado se fala.
Um homem de Estado pode liderar monarquias, oligarquias, repúblicas. Se o regime é republicano, dificilmente o monarquista pode conduzi-lo a bom termo. Pior ainda se ele esquece toda referência política e age como egocrata. A ruína da extinta URSS firmou-se no apelo aos títulos e rituais czaristas. O mais arrogante dos títulos ostentados por Stálin foi o de "paizinho dos povos". Quando ele falava, os aplausos eram tantos que funcionários providenciavam baldes para esfriar as mãos lisonjeiras. Não sabemos se o inchaço das mãos subiu ao cérebro, ou ocorreu o inverso.
Hoje, nos salões do Kremlin, ecoa a vergonha do passado, quando muitos preferiram trair o programa democrático para endeusar um homem como os outros.

Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).


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