São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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Esquerda totalitária e esquerda democrática

RUY FAUSTO


Se os seus executantes são camponeses, na maioria dos casos as iniciativas do MST são dirigidas e planejadas por equipes ideológicas


EM ARTIGO ANTERIOR, publicado nesta Folha em 14 de maio, "A esquerda e a América Latina", comentei artigo do venezuelano Teodoro Petkoff, em que o autor distingue duas esquerdas na América Latina, a que ele chama de "reformista radical" (Tabaré Vázquez, Kirchner, Lula etc.) e a "arcaica" (Castro e Chávez, sobretudo). No presente texto, tento exemplificar e desenvolver, de um modo mais geral, essa oposição. E dizer duas palavras sobre a posição de Lula e do PT.
Bom exemplo da oposição que separa as duas esquerdas é a experiência trágica do governo Allende. Costuma-se dizer que a queda de Allende tem muito a ver com a Guerra Fria. Isso é verdade, mas -guardadas as proporções- em duplo sentido.
Os americanos sustentaram os golpistas. Castro apoiava Allende, mas manipulando a situação em favor de si próprio e do bloco que representava (sobre a violência das "pequenas nações", ver Adorno). Allende era um democrata, mas cometeu o erro -muito da época, é verdade- de aceitar uma ajuda importante de Castro antes da sua eleição, o que abriu a porta para todo tipo de manobras.
Castro prolongou a sua visita ao Chile em 1971, o que criou problemas para Allende. Em seguida, tentou pressioná-lo a nomear, para um cargo de chefia da polícia chilena, um cubano membro da segurança castrista, que se casara com uma das filhas do presidente (sobre esses pontos, ler, entre outros, "Cuba Nostra", de A. Ammar, Paris, 2005).
Em um plano mais geral, Fidel Castro sustentou o aventureirismo da extrema-esquerda chilena. Mas a "rota de colisão" existe, mesmo antes que uma das esquerdas chegue ao poder. Um bom exemplo disso, no Brasil, são as ações do MST. Uma parte da esquerda não-radical hesita em criticá-las. Condenando-as não estaríamos fazendo o jogo da direita?
Na realidade, apesar das aparências, essas "ações" não preparam um futuro melhor para os camponeses, nem a curto prazo -porque não se trata de legítimos movimentos de pressão, mas de ações violentas que prolongam o ciclo das violências -nem a longo prazo. Os intelectuais que hoje giram em torno das "universidades" do MST deveriam refletir sobre qual foi o destino do campesinato nas revoluções russa e chinesa.
A rigor, as "iniciativas" do MST não são ações "do movimento camponês". Se os seus executantes são camponeses -o que aliás nem sempre é verdade-, na grande maioria dos casos as iniciativas são não só dirigidas, mas também planejadas, por equipes ideológicas. É preciso evitar toda "ilusão sociologizante".
Na realidade, o significado essencial desse tipo de movimento está mais presente na ideologia dos dirigentes -porque esta define os seus objetivos presentes e futuros- do que na condição dos seus participantes diretos. Engana-se o ex-petista que comparou os dirigentes do MST a Gandhi ou a Martin Luther King. Gandhi visava a independência da Índia. Luther King, o fim da discriminação racial. A direção do MST -à sua maneira ela o diz, quando subscreve o ideário castrista ou leninista- não quer ("apenas", isto é, "na realidade") libertar os camponeses, mas substituir um tipo de opressão por outra.
Quanto ao governo Lula, sem dúvida ele não aderiu ao populismo ou ao totalitarismo, e isso é um mérito. Mas mérito muito insuficiente. Uma parte da direção petista investiu o antigo impulso revolucionário na montagem de uma máquina de corrupção. O resultado foi uma espécie de "bolchevismo mafioso".
Quanto aos não corruptos dentro do PT, é visível que lhes falta o conceito de uma política não-revolucionária e não-corrupta -o de uma política socialista e democrática. Eles declaram condenar os "delinqüentes" do partido. Mas, por falta de uma perspectiva bem lúcida, ou acabam resvalando, em alguma medida, na tese perigosa de que a corrupção é mais ou menos inerente a toda prática política operando em "meio" capitalista, ou atenuam responsabilidades por meio do argumento de que também os outros partidos cometeram pecados e que destes não se falou o quanto era preciso, argumento insuficiente (mesmo se a imputação é legítima), já que, além do tamanho da operação, há, no caso do PT, uma circunstância agravante pelo fato de se tratar de um partido que se apresentava como modelo de virtude cívica.
Corrupto ou desarmado diante da corrupção, o petismo não oferece uma boa alternativa ao revolucionarismo. Só recusando um e outro a esquerda encontrará o seu caminho.

RUY FAUSTO é filósofo e professor emérito da Universidade de São Paulo

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