São Paulo, Sexta-feira, 25 de Junho de 1999
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O estigma corporativista


A proposta de reforma concentra o poder na cúpula do Judiciário como nunca se viu na história republicana


REGINALDO DE CASTRO

A discussão em torno da reforma do Judiciário tem colocado em cena, de maneira maldosa e distorcida, a questão corporativa. O empenho de participação -legítimo e indispensável- da advocacia brasileira tem sido contraditado, em setores políticos refratários ao diálogo, pela emissão obsessiva de uma única palavra: corporativismo.
Imagina-se que basta proferi-la para que o estigma da perversão contamine e descredencie definitivamente o interlocutor. Algo assim como o medieval dístico latino do "vade retro, Satana", proferido pelas forças da Santa Inquisição sempre que alguém desafiava seus interesses ou sua capacidade exegética.
É evidente: o corporativismo, como defesa de interesses fisiológicos de uma categoria profissional, é nocivo à sociedade. Nesses termos, tem sido combatido pela OAB. Mas, como manifestação de questões que envolvem o exercício de determinada atividade profissional e seus reflexos na sociedade, deve ser encarado como legítimo e positivo.
A reforma do Judiciário é uma das mais antigas expectativas da advocacia brasileira. Em sua defesa, a OAB tem sido voz pioneira na sociedade civil, expondo-se a críticas e incompreensões por parte do poder político, que nem sempre a tratou com a devida atenção.
Foi só a partir de denúncias veiculadas na CPI do Judiciário, no Senado, que a reforma passou a ser vista como urgente e relevante. A difusão dada ao tema e suas consequentes repercussões fizeram com que ela emergisse dos escaninhos da Câmara, onde repousava havia nada menos que sete anos.
Posta em tramitação, nós, advogados, nos apresentamos para discuti-la, dar nossa contribuição. Para nossa surpresa, porém, nos vimos hostilizados por algumas lideranças políticas desabituadas ao debate e ao exercício do contraditório. Torceram o nariz às nossas observações e passaram a contraditá-las invocando o estigma corporativista. Ora, se os advogados, que convivem no dia-a-dia com as atribulações da estrutura judiciária, não tiverem legitimidade para discuti-la e propor soluções, quem mais terá?
Não se está dizendo que o tema, por sua complexidade técnica, deva estar restrito aos profissionais do setor. Muito pelo contrário. A OAB tem dito e repetido (e quem se der ao trabalho de ler o que venho afirmando há anos há de constatá-lo) que a reforma é importante demais para que a sociedade seja excluída de sua discussão.
A questão é que tanto o relator da comissão especial da Câmara, deputado Aloysio Nunes Ferreira, como o presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, sustentam a plena exclusão: a reforma não deve ser discutida pela sociedade, nem pelos advogados, nem pelos juízes, nem por ninguém. Todos devem, isso sim, acatar o que é proposto pela simples razão de que eles o consideram o que há de melhor. Nossa exclusão é explicada pelo relator a partir de um único e singelo argumento: somos uma corporação. Isso nos torna suspeitos e nos desabilita ao debate.
Nenhum dos dois se deu ao trabalho de explicar por que e em que nossas críticas são corporativistas, no sentido pejorativo que dão ao termo. O que sustentamos (e demonstramos) é que a proposta verticaliza e concentra o poder na cúpula do Judiciário como nunca se viu na história republicana brasileira. Nem o Pacote de Abril, de 1977, editado com o Congresso em recesso compulsório e o AI-5 ainda vigente, ousou tanto em matéria de concentração de poder e arbitrariedade.
Aprovado o relatório, os juízes estarão amordaçados. Antes mesmo de qualquer decisão em questões polêmicas, os tribunais superiores poderão avocar os processos para decidi-los em Brasília, com efeito vinculante. Com tal concentração, cria-se ambiente para implantar uma "ditadura constitucional", que submeta a sociedade ao controle de poucos. Para a advocacia, essa concentração não reduzirá o mercado de trabalho. Ao contrário: fará com que sejam remetidos aos tribunais superiores mais e mais novos recursos e reclamações, ampliando nossa atividade.
Não há, pois, perda corporativa. O que denunciamos é a perda de cidadania, expressa no amordaçamento dos juízes de instâncias inferiores. O mesmo se dá na composição do chamado Conselho Nacional de Justiça, que o relator submeteu inteiramente ao Supremo Tribunal Federal. Troca-se, assim, o controle externo, garantia indispensável a um Judiciário transparente, pela manutenção do controle interno, de índole (esta sim) corporativista.
Temas de enormes controvérsia e complexidade, como a extinção da Justiça do Trabalho, foram deliberados sem que as partes envolvidas tenham sido consultadas. Nós, advogados, entendemos como imperativo de cidadania não só participar da reforma, mas sobretudo pô-la em debate. O estatuto da OAB, antes de explicitar deveres classistas, nos compromete com a defesa do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos, da justiça social e do bom funcionamento das instituições jurídicas. Estamos certos de que nossos antecedentes em questões de cidadania respaldam nossa participação.
Não foi, certamente, por razões corporativas que lutamos contra o Estado Novo, a ditadura militar pós-64 e o impeachment de Collor. O mesmo espírito cívico nos mobiliza, neste momento, na luta pela reforma do Judiciário. A sociedade nos conhece e, ao contrário do que acontece com algumas lideranças, não nos tem na conta de suspeitos.


Reginaldo Oscar de Castro, 56, advogado, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).



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