São Paulo, quarta-feira, 25 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O MP, a investigação criminal e o STF

MARCO ANTONIO NAHUM

Com o novo sistema constitucional de 1988, o Ministério Público ganhou relevantes funções. É certo que não logrou outras que pretendia, como a possibilidade de fazer investigação criminal de maneira direta, excluindo a polícia de inquéritos selecionados e especiais. Esse poder é pretendido pelo Ministério Público desde 1936, quando, pela primeira vez, o ministro Vicente Rao tentou inserir no sistema jurídico o juizado de instrução. De lá para cá foram rejeitadas sete emendas à Constituição nesse sentido. Há uma oitava no Congresso Nacional.


Impõe-se restringir o tema dos poderes investigatórios do MP a seus limites: a questão não é política, mas de respeito à Constituição


Não obstante todas essas investidas, uma vez ou outra o MP tenta conquistar a possibilidade da investigação criminal direta também por meio do Judiciário. Agora essa via pode ser-lhe impedida. Após denegada a possibilidade por uma das turmas do Supremo Tribunal Federal, um de seus ministros resolveu levar a questão ao tribunal pleno, o que significa que a rejeição pode ser definitiva também no Judiciário.
Ciente do "perigo", o Ministério Público reuniu suas forças e se mobilizou. Foi ao Supremo. Apresentou memorial aos ministros. Atua de maneira significativa na mídia, a fim de sensibilizar a opinião pública, fazendo-a crer como única instituição credenciada para realizar investigações criminais sérias em nosso país.
Impõe-se, contudo, restringir o tema dos poderes investigatórios do MP a seus limites: a questão não é política, mas de respeito à Constituição. Afaste-se da discussão a probidade inegável da grande maioria dos membros do MP. Não se traga à baila eventuais carências de outras instituições. Esses temas, embora importantes, não se circunscrevem à constitucionalidade da função e, assim, não estão em debate e podem fazer com que se deixe em segundo plano a questão única que está em discussão, qual seja, o respeito à Constituição.
Por isso, o STF não pode assumir uma decisão "a meio-termo". Coloca em risco a democracia. Seus ministros não podem adotar sugestões (divulgadas pela Folha na edição de 20 de agosto último) tais como "o Ministério Público pode fazer algumas investigações, desde que com algumas restrições para conter abusos". Isso ofende o sistema jurídico constituído, e o Supremo Tribunal Federal é seu guardião maior. "Permitir que promotores e procuradores complementem auditorias do fisco e sindicâncias de outros órgãos públicos, mas desautorizá-los a interrogar pessoas suspeitas de praticar crime, porque essa seria uma tarefa típica do inquérito policial, que deve ser conduzido por delegado", é mudar para ficar como está, a fim de que a mudança permita fingir que não estamos como estávamos.
Levar o contraditório à investigação do Ministério Público é fazer processo sem a garantia constitucional do juiz. Chamar de "inquérito administrativo criminal" aquilo que não pode ser chamado "inquérito policial" (porque este é exclusivo da polícia) é fazer a vida seguir como se tivesse mudado, embora saibamos que nada mudou.
A democracia não se faz com "soluções de meio-termo", mas com respeito aos preceitos constitucionais que determinam o equilíbrio de poderes entre as instituições que a compõem, a fim de que não haja supremacias institucionais geradoras de um Estado totalitário.
O art. 144 da Constituição Federal é explícito ao determinar exclusividade à polícia para a investigação criminal. O MP tem o controle externo dessa atividade (art. 129, VII, da CF) e, por óbvio, não pode praticar atos próprios da polícia. Seria um contra-senso inconcebível. Corregedor dos próprios atos.
Outra interpretação é tentativa de ludibriar a todos. Se quem pode o mais pode o menos, aquele que profere a sentença criminal também pode oferecer denúncia. A doutrina dos poderes implícitos, invocada pelo MP, só poderia ser aplicada se a Constituição não atribuísse à polícia função exclusiva.
Não se tente desestabilizar o equilíbrio dos poderes inseridos na Constituição sem que haja, previamente, ampla e democrática discussão no Congresso Nacional.
Se nossa polícia tem problemas (e os tem), cabe enfrentá-los. Porém substituir uma instituição pela outra é fechar os olhos para a realidade do problema. A polícia será ainda mais desprestigiada. O Ministério Público não possui estrutura científica suficiente para realizar diretamente todas as investigações criminais necessárias, por mais que procure "selecionar" os casos a serem investigados.
Nosso sistema jurídico já permite um eficaz trabalho conjunto entre o MP e a polícia. Basta que aquela instituição cumpra, na prática, o determinado pela Constituição, que lhe confere poder correcional sobre a atividade policial. Se o exercer, diminuirá a alegada "corrupção" e impedirá as "investigações frustradas". O Ministério Público pode requisitar a abertura de inquérito e requerer diligências. Se o fizer de maneira eficaz e sem ranços de expedientes burocráticos, chegará a resultados ainda mais eficazes do que aqueles eventualmente obtidos por sua arbitrária investigação realizada nos "inquéritos administrativos criminais".
Em verdade, conclamam-se o MP e a polícia para cumprirem suas funções já determinadas pela legislação. Que trabalhem conjuntamente visando o maior dos fundamentos jurídicos de nossa Carta Magna: o bem comum.

Marco Antonio Rodrigues Nahum, 58, juiz de direito do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, é o presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).


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