São Paulo, sexta, 25 de setembro de 1998

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A sexualidade e as eleições de novembro


Apareceram não as taras de Clinton, mas as dos que o acusam. Starr parecia o grande inquisidor de "O Martelo das Feiticeiras"


ROSE MARIE MURARO

As eleições de novembro, em que se decidirá o futuro do Congresso nos Estados Unidos, estão sendo disputadas sob o maior festival de hipocrisia da história. Os republicanos estão usando como arma principal o escândalo sexual do presidente democrata. Esse é o mais importante exemplo que se conhece do uso da sexualidade com fins não só políticos como, principalmente, econômicos.
Há milhares de anos se coloca o pecado sobre a sexualidade, a fim de desviar a atenção da manipulação do poder -esse, sim, o verdadeiro pecado. E o cristianismo é exemplo disso. Em todas as vezes que, no Evangelho, Cristo se referiu à sexualidade, foi para defender a prostituta ("que entrará no reino do céu antes de todos os outros") e a mulher adúltera, desafiando os que quisessem atirar a primeira pedra. E, em todas as vezes que se referiu ao poder, foi para condenar os poderosos.
Contudo, nos 2.000 anos seguintes, pouco a pouco inverteram-se as tendências, atribuindo-se à sexualidade a origem de todos os pecados -inclusive o original, destinado a "livrar a cara" dos poderosos-, o que permitia defender a guerra como justa e a supressão física do dissidente como legítima. Assim, os piores genocídios destes dois milênios foram as guerras religiosas e a Inquisição, feitas em nome de Deus.
Agora, está acontecendo exatamente a mesma coisa: a condenação da sexualidade do presidente está servindo para desviar a atenção do povo americano da gravíssima situação a que os EUA e o mundo moderno estão sujeitos.
Atualmente, duas instâncias estão fora de controle: o progresso tecnológico e o sistema econômico. Ambos estão se alimentando e se acelerando mutuamente, com consequências totalmente imprevisíveis.
Mas alguns vetores podem ser observados hoje: 45% do PIB mundial está na mão de apenas 348 pessoas (que possuem mais de US$ 1 bilhão cada uma). Elas "chupam" os recursos das economias de todos os países, gerando desnutrição, desemprego em massa, quebrando nações do dia para a noite.
Como disse Rubens Ricupero (Folha, 12/9), "o capital especulativo se alimenta de carne humana", não só no Terceiro Mundo como também nos EUA. Nesse país, 43% da população (cerca de 120 milhões de pessoas) tem suas economias investidas nas Bolsas e 57% do patrimônio das famílias americanas vem do mercado financeiro (suplemento da "Time" na Folha, 10/9).
Ora, isso sobrevalorizou os preços das ações. De dois meses para cá, o índice Dow Jones caiu uns 20%, causando um prejuízo ao povo americano de US$ 4 trilhões ("Jornal do Brasil", 8/9), e as Bolsas ainda devem cair uns 20% até se ajustarem outra vez à realidade do sistema moderno.
Os grandes investidores e os fundos de pensão (poderosíssimos também) já tiraram seu dinheiro da Bolsa de Nova York. Só ficaram os amadores, pequenos investidores da classe média, possuídos pela "fissura" de ficar ricos sem fazer força. E foram eles, nos últimos dois meses, que tiveram prejuízo e continuam tendo. São eles que estão pagando a conta da especulação.
Se os republicanos ganharem o poder, ninguém sabe o que pode acontecer. São neoliberais, conservadores, adeptos do "laissez-faire", que hoje as próprias autoridades mundiais já entenderam como o grande obstáculo ao desenvolvimento humano. Eles podem fazer esse processo recessivo acelerar-se ainda mais -aí, sim, com uma quebra sistêmica mundial.
A nação americana é a que mais deve ao resto do mundo. Só o governo central tem uma dívida de US$ 5,5 trilhões. Os bancos devem 117% do PIB, isto é, mais de US$ 9 trilhões (Folha, 19/9). E tudo financiado pelo dinheiro que entra diariamente nos Estados Unidos, fugindo dos países emergentes. As firmas americanas estão endividadas até o pescoço, mas o povo continua a consumir, com uma lógica indiscutível: "Vamos continuar a consumir porque, se quebrarmos, quebra o mundo".
Para anestesiar o inconsciente popular, inventa-se o escândalo. Apareceram, contudo, não as taras do presidente, mas as dos que o acusam. Kenneth Starr, no interrogatório, parecia o grande inquisidor de "O Martelo das Feiticeiras". O "macarthismo sexual" acaba trazendo a público os pecados dos que estão atirando as pedras. Não que o presidente seja santo, mas no seu cargo todos são assediadíssimos por todos os tipos de mulheres.
Nas classes dominantes, a vida privada é permeada pelo poder e pelo dinheiro. Ela, portanto, é toda manipulada, tal como a vida pública. E é isso que a classe média conservadora está começando a entender: colocar o pecado sobre o poder e não sobre a sexualidade. Mas só saberemos se ela aprendeu no início do mês de novembro.


Rose Marie Muraro, 67, é escritora e editora. É autora de "A Sexualidade da Mulher Brasileira: Corpo e Classe Social no Brasil" (Vozes, 1983) e "A Mulher no Terceiro Milênio" (Rosa dos Tempos, 1992), entre outros livros. Foi membro fundador do Centro da Mulher Brasileira e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.




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