São Paulo, sexta-feira, 25 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Eleições no estado de natureza?

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Nestes tempos de afirmação extrema do liberalismo, é bom lembrar alguns de seus pilares, os conceitos de estado de natureza e de estado de guerra.
Na clássica formulação de Locke, todos os homens são perfeitamente iguais e livres para dispor de si e de suas posses. No cerne dessa doutrina estão o indivíduo e a propriedade: a pessoa só existe na medida em que se exterioriza na apropriação do mundo exterior; este só existe na medida em que se efetiva pela atividade humana.
Sem a propriedade, o homem se equipara ao animal, sem o trabalho, o mundo é um deserto. Esses atributos regulam-se pela lei natural, fundada na razão, que simultaneamente os garante e limita. A todos é irrestrita a liberdade para dispor de si e de seus bens, mas lhes é vedada a licença para destruir a si e a seus pares. Também o direito à propriedade é perfeito, mas dentro da regra de que "todo homem deve ter tanto quanto possa utilizar", inclusive com o uso da moeda, justificando-se a acumulação pelo aumento da riqueza disponível.
Por mais que esse código seja idealizado, favorecendo os pares e legitimando a dominação, há limites internos ao sistema sem os quais ele rui. Nas eleições de agora, mesmo esses freios mínimos desapareceram.
Indivíduos e partidos agem como se inexistisse a legalidade e a magistratura civis, empregando a violência do estado de natureza. Neste, todos são juízes e executores da lei natural, reprimindo as suas violações e pressupondo que o transgressor, um degenerado que abandonou os princípios da natureza humana, declare não "viver pelo governo da razão e da equidade comum".
Este é o sentido da fúria desencadeada na ofensiva de José Serra. Ele e seus partidários imaginam-se o absoluto da razão, os arcanos do saber, os anjos do bem, a bênção do remédio e a cura dos males, vindicando o monopólio do profissionalismo. Os outros são demonizados, como nos golpes contra Ciro Gomes e Roseana Sarney (com ajuda de ambos, parafraseando Janio de Freitas), aspergindo escândalos na vida privada e promovendo a execração pública dos oponentes.
Isso como se o próprio PSDB não fosse confesso comprador de votos, manobra vista por seus ideólogos como realismo e como se os seus líderes não buscassem abrigo no foro privilegiado para eludir as consequências de seus atos.
Voltando ao estado de natureza: mesmo as menores quebras da lei natural justificam a supressão da criatura nociva, que teria declarado guerra contra a humanidade e que, "portanto, pode ser destruída como um leão ou um tigre, uma dessas bestas selvagens com quem o homem não pode ter nem sociedade nem segurança" (Locke).


Indivíduos e partidos agem como se inexistisse a legalidade civil, empregando a violência do estado de natureza


Assim diz Serra: os adversários são feras perigosas e, como elas, suscitam medo pelo caos gerado por sua vitória, pelas catástrofes da ingovernabilidade, desestabilização econômica e funestas alianças internacionais. Isso como se a mendicância, o desemprego, a estagnação econômica, a criminalidade, a concentração de renda, a liquidação do patrimônio nacional, o império financeiro não fossem uma safra do governo que, deseje ou não, Serra encarna.
Do interior do estado de natureza, da contínua desconfiança e hostilidade, do uso do poder e do impulso dominador, gesta-se o estado de guerra: o suposto, aqui, não é uma apaixonada erupção de cólera ou precipitado conflito contra um agressor possível, mas, pelo contrário, um calmo e persistente desígnio de inimizade e destruição, vigorando o direito do mais forte. Não há melhor perfil dos metódicos ataques desencadeados por Serra e seus "spin doctors". Mas, desta vez, o feitiço virou contra o feiticeiro: as pesquisa atestam que não deu certo, no eleitorado, a pletora de auto-incensamento e maledição do concorrente, anatemizado por estelionatário eleitoral e gerador de hiperinflação.
O Estado de guerra aplica-se, igualmente, à dependência financeira que nos coloca sob o poder dos interesses externos, tolhendo a atividade produtiva, a distribuição da renda, os investimentos sociais, ampliando os contingentes do narcotráfico. É nessa trama que emerge a mais grave consequência da retórica tucana: o discurso da ignorância, inexperiência, inépcia e desonestidade do concorrente, encenando o apocalipse, fornece os argumentos e pretextos de que precisam os "investidores" para fechar suas garras.
Oferecer armas que legitimam os "ataques" especulativos que empobrecem a todos é mais que irresponsabilidade ou imprudência, é ato criminoso contra o povo deste país, que sobrevive a despeito de seus governos.
Dizer que tal propaganda se justifica em nome da liberdade de expressão e criticá-la consiste em patrulhamento, é usar de um velho sofisma, a falácia de tomar uma coisa pela outra: não se trata aqui de liberdade, mas de licença, de abuso da palavra, da garrulice, vício que, desde a Grécia antiga, é analisado como fonte e sustentáculo da tirania. E assim, retornamos ao início: sem limites, dilacera-se o corpo político .


Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular do Departamento de Filosofia da Unicamp e do Departamento de Filosofia da USP. É autora de "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Unesp editora), entre outras obras.


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