São Paulo, sexta-feira, 25 de outubro de 2002 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Eleições no estado de natureza? MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Nestes tempos de afirmação extrema do liberalismo, é bom lembrar alguns de seus pilares, os conceitos
de estado de natureza e de estado de
guerra.
Assim diz Serra: os adversários são feras perigosas e, como elas, suscitam medo pelo caos gerado por sua vitória, pelas catástrofes da ingovernabilidade, desestabilização econômica e funestas alianças internacionais. Isso como se a mendicância, o desemprego, a estagnação econômica, a criminalidade, a concentração de renda, a liquidação do patrimônio nacional, o império financeiro não fossem uma safra do governo que, deseje ou não, Serra encarna. Do interior do estado de natureza, da contínua desconfiança e hostilidade, do uso do poder e do impulso dominador, gesta-se o estado de guerra: o suposto, aqui, não é uma apaixonada erupção de cólera ou precipitado conflito contra um agressor possível, mas, pelo contrário, um calmo e persistente desígnio de inimizade e destruição, vigorando o direito do mais forte. Não há melhor perfil dos metódicos ataques desencadeados por Serra e seus "spin doctors". Mas, desta vez, o feitiço virou contra o feiticeiro: as pesquisa atestam que não deu certo, no eleitorado, a pletora de auto-incensamento e maledição do concorrente, anatemizado por estelionatário eleitoral e gerador de hiperinflação. O Estado de guerra aplica-se, igualmente, à dependência financeira que nos coloca sob o poder dos interesses externos, tolhendo a atividade produtiva, a distribuição da renda, os investimentos sociais, ampliando os contingentes do narcotráfico. É nessa trama que emerge a mais grave consequência da retórica tucana: o discurso da ignorância, inexperiência, inépcia e desonestidade do concorrente, encenando o apocalipse, fornece os argumentos e pretextos de que precisam os "investidores" para fechar suas garras. Oferecer armas que legitimam os "ataques" especulativos que empobrecem a todos é mais que irresponsabilidade ou imprudência, é ato criminoso contra o povo deste país, que sobrevive a despeito de seus governos. Dizer que tal propaganda se justifica em nome da liberdade de expressão e criticá-la consiste em patrulhamento, é usar de um velho sofisma, a falácia de tomar uma coisa pela outra: não se trata aqui de liberdade, mas de licença, de abuso da palavra, da garrulice, vício que, desde a Grécia antiga, é analisado como fonte e sustentáculo da tirania. E assim, retornamos ao início: sem limites, dilacera-se o corpo político . Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular do Departamento de Filosofia da Unicamp e do Departamento de Filosofia da USP. É autora de "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Unesp editora), entre outras obras. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Denis Lerrer Rosenfield: Os intelectuais Índice |
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