São Paulo, segunda-feira, 25 de novembro de 2002

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BORIS FAUSTO

Avanços da esquerda

"Avanzar sin trenzar". Lembrei-me do slogan, agora que muitos analistas se perguntam sobre as repercussões da vitória de Lula no campo da esquerda latino-americana.
"Avanzar sin trenzar" -avançar sem trançar, ou seja, sem compromissos e sem concessões- foi a palavra de ordem de setores radicais do espectro político chileno, nos tempos do governo Allende. A tragédia final daquele governo e os horrores da ditadura de Pinochet mostraram o quanto estava errado o caminho proposto. Era necessário avançar, sim, mas dentro do possível, contando com o apoio de amplos setores sociais e o entendimento partidário com a Democracia Cristã.
Apesar de seu impacto, a lição foi apenas um primeiro passo na revisão das concepções da esquerda latino-americana. Ao que tudo indica, um passo maior -em outro contexto- se deu com as eleições brasileiras deste ano.
Voltando à pergunta: que reflexos poderá ter a vitória de Lula nas esquerdas do continente?
Em primeiro lugar, é preciso separar o joio do trigo se não quisermos correr o risco de chamar de esquerda governos populistas como o de Chávez, ou movimentos narcoguerrilheiros como o das Farc, na Colômbia. Feita a ressalva, tudo indica que ganharam alento organizações como a Frente Ampla uruguaia, as correntes de esquerda mexicanas, no interior e fora do PRD, e o próprio Partido Socialista chileno, no âmbito do "poder concertado" com a Democracia Cristã. O caso argentino é mais complicado porque é difícil prever o que poderá resultar da fragmentação e do desconcerto que atinge todas as organizações partidárias daquele país.
Entretanto, a vitória do PT não apenas alenta a esquerda latino-americana, mas encerra várias lições. Em primeiro lugar, a vitória foi alcançada por caminhos frontalmente opostos ao "avanzar sin trenzar". O fim do discurso radical contribuiu também para criar laços do partido com as grandes massas - mais conservadoras do que às vezes se pensa -, com amplos setores da classe média e com individualidades que integram o mundo "dos que mandam".
Mas as lições mais importantes se encontram em duas constatações. Em primeiro lugar, o caminho que vem sendo seguido pela direção petista, nesta fase de transição, indica a intenção de respeitar contratos e de considerar como princípios básicos a responsabilidade fiscal, a estabilidade da moeda e o controle da inflação. A aceitação desses princípios - e, espera-se, o seu cumprimento - por parte de quem fez pouco deles, por tanto tempo, encerra uma bela lição não só para as esquerdas, mas para os populismos latino-americanos de todo gênero.
Por fim, a eleição de Lula, nas condições de absoluto respeito às normas democráticas, foi uma límpida demonstração, dirigida a setores radicais daqui e de fora, de que as regras democráticas não são um expediente descartável, mas (desculpem o tom solene) o substrato da vida social e política das nações que querem ser civilizadas.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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