São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Sobre subdesenvolvimento e heranças

MARCIO POCHMANN e ALEXANDRE DE FREITAS BARBOSA

Depois de uma ascensão fulminante, original e criativa, o conceito de subdesenvolvimento subitamente ficou antigo. O Brasil passou então a figurar no rol das economias emergentes, uma espécie de ante-sala do Primeiro Mundo. Nos anos 90, ficamos modernos, não produzimos mais "carroças", e parte das nossas elites ficaram atualizadas em tudo: palmtops, laptops, celulares, automóveis importados e um amplo pacote de novas tecnologias e bens de consumo, alguns tipicamente conspícuos.
Ultimamente, passamos a copiar as políticas sociais. Entretanto, como queremos sempre a versão mais recente de tudo, parte das nossas elites importa as políticas sociais já deturpadas pela tentativa de destruição do Estado do Bem-Estar Social promovida pelas correntes neoliberais dos países desenvolvidos. A grande diferença é que a ideologia da focalização, se avançada no Brasil, que jamais logrou expandir o acesso a todos os serviços e políticas sociais, aponta para a manutenção e reforço de uma cidadania cada vez mais segmentada.
Num país onde ilhas de riqueza convivem com um imenso mar de exclusão social, focalizar, pura e simplesmente, significa excluir. Daí porque, no entender dos nossos liberais cosmopolitas, para ampliar o gasto social devamos eliminar os supostos "privilegiados". No limite, a universidade, o SUS e o programa de seguro-desemprego, enfim, todos os programas não diretamente contributivos, devem se anular para distribuir recursos "num grande helicóptero" para os mais pobres, que deverão racionalizá-los para obter saúde, educação e habitação no mercado ou então num setor público com serviços cada vez mais limitados.
Essa é a utopia da focalização do gasto, da qual pode-se gostar ou não. O que, entretanto, não se admite é culpar o gasto social pela desigualdade da renda (ver José Márcio Camargo, "Elites, heranças e maldições", na Folha de 8 de janeiro de 2004). Ora, o Brasil foi criado e reproduzido na desigualdade. Colônia, escravidão, depois abundância de mão-de-obra, manutenção de margens de lucro elevadas, permanência de um Estado autoritário e privatista. Tudo isso explica a desigualdade, antes e depois do gasto social.



A ideologia da focalização, se avançada no Brasil, aponta para a manutenção e reforço de uma cidadania cada vez mais segmentada
Aliás, quando o gasto social se expande, no pós-1930, ele se dá, em grande medida, a partir do mérito das contribuições sociais, cujo benefício adquirido depende da remuneração, reproduzindo, assim, a desigualdade já inerente ao mercado de trabalho. Apenas após a Constituição de 1988, importantes políticas sociais foram asseguradas independentemente da contribuição (acesso à saúde, avanço do seguro-desemprego e expansão de benefícios vinculados à Lei Orgânica de Assistência Social e da Previdência), trazendo considerável avanço na conformação dos direitos de cidadania.
É verdade que a expansão do gasto social não logrou reduzir de forma expressiva a desigualdade de renda. Isso por dois motivos essenciais. O primeiro devido ao gasto social não ser relativamente alto, encontrando-se aquém da universalização necessária. O segundo referente à manutenção da estrutura tributária regressiva e à precarização crescente do mercado de trabalho.
Por trás disso tudo encontra-se o processo de financeirização da riqueza, que recentemente tem compensado negativamente os avanços obtidos pela expansão do gasto social. Ou seja, o que o pobre ganha via transferências de renda ou acesso a serviços públicos perde pagando juros e impostos indiretos no consumo. Já o rico paga relativamente poucos impostos e vive das aplicações de capital, cada vez maiores no mercado financeiro.
Se já não bastasse, a renda financeira passa a obstar o próprio avanço dos gastos sociais, via expansão da dívida pública. É aí que entra a ideologia importada da focalização, em crise nos países desenvolvidos, justamente quando ela aparece com mais força por aqui. Em síntese: na equação restrita dos economistas liberais, que encara desigualdade e gastos sociais como antípodas, não há espaço para a política pública da universalidade e nem para a cidadania plena.
Sob nova feição, estamos às voltas com o subdesenvolvimento, experimentando todas as suas implicações econômicas, políticas, sociais e ideológicas, apesar e por conta das políticas neoliberais no após 1990. A economia apequenou-se pela vulnerabilidade externa e pela concepção da tecnologia como cópia e bem de consumo. Suas políticas ingressaram na lógica do curto prazo e na submissão aos vários interesses das elites dominantes, enquanto na área social busca-se discriminar os "pouco pobres" dos "muito pobres".
Tal constatação não deve servir como forma de autocomiseração ou de condescendência em relação a um destino já traçado. Funciona, ao contrário, como uma opção de transformação a partir da realidade concreta. Nesse sentido, o primeiro passo para a superação do subdesenvolvimento depende do rompimento definitivo com a nossa herança de mimetismo e subordinação cultural. E a universidade pública cumpre aqui um papel fundamental.


Marcio Pochmann, 41, professor licenciado do Instituto de Economia da Unicamp, é secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo. Alexandre de Freitas Barbosa, 32, doutor em economia do trabalho pela Unicamp, é assessor econômico da Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo.


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