São Paulo, segunda-feira, 26 de abril de 2004

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JOSÉ SERRA

Visão de islandês

Conheci o professor islandês E.K., do Centro de Estudos Internacionais da Universidade de Reykjavík, no início dos anos 90 num seminário em Aspen, nos Estados Unidos. Depois ele veio ao Brasil e registrei algumas de suas observações nesta coluna. Durante o governo de Fernando Henrique, encontrei-o somente uma vez, pois deixei de comparecer a seminários internacionais. Além disso, os interesses do professor se deslocaram para o Sudeste Asiático, que se consolidava como a região dos países em desenvolvimento que, ao contrário do Brasil, têm dado certo.
Na semana passada, reencontrei EK, como é conhecido pelos amigos, em Brasília. Ansioso para debater a experiência do PT no governo, ele já havia rascunhado dois artigos para um jornal islandês, sobre os quais pediu minha opinião. Num deles, como ambientalista convicto, registrou: "Fiquei perplexo com o fato de que o governo brasileiro está concentrando sua atenção no debate sobre os transgênicos, deixando de lado o trágico e estúpido desmatamento da Amazônia, que pode ter chegado em 2003 ao equivalente a um terço da Islândia. Nessa matéria, o Brasil conseguiu dois grandes progressos: na qualidade das medidas de destruição das florestas e na destruição propriamente dita".
EK, embora seja antropólogo, tem boas noções de economia. Mas ressalva que, talvez, do lado de baixo do Equador, a teoria econômica seja diferente. "É fascinante a economia brasileira", escreve. "O governo, a fim de pagar os maiores juros reais do mundo, fixados por ele mesmo, arrecada tributos tão pesados quanto os de um país escandinavo. Com isso, eleva os custos das empresas, que, então, aumentam os preços. Para segurar o repique inflacionário, o governo mantém ou aumenta novamente os juros reais, o que exige gastos fiscais elevados, que demandam aumentos de impostos, que..."
O islandês continua: "A inflação brasileira está sendo empurrada pelos custos (câmbio, impostos, tarifas, preços públicos), mas, surpreendentemente, é combatida como se a pressão viesse apenas da demanda". Cada vez mais desnorteado, prossegue: "Os brasileiros têm também conceitos fiscais estranhos. Consideram que praticam austeridade fiscal, mas os gastos do Tesouro Nacional subiram de 25,1% para 28,5% do PIB entre 2002 e 2003, e o déficit fiscal aumentou quatro vezes".
Mais interessante foi o que escreveu sobre a política: "Estive aqui durante o governo de Fernando Collor e conheci parlamentares que apoiavam o governo. Na administração seguinte, de Itamar Franco, eles continuavam apoiando o governo. Durante o governo Fernando Henrique, ainda apoiavam o governo. Pois não é que agora também apóiam o governo Lula e até mandam mais do que antes? Não sei por que os presidentes brasileiros se queixam de falta de apoio".
Confesso que não consegui desfazer suas perplexidades. Fracassei, também, na tentativa de explicar-lhe o programa Fome Zero. Ele escreveu que, "achava, como todo mundo, que a fome no Brasil estava sendo zerada por esse programa. Fiquei surpreso ao ouvir de um senador, que é da base do governo e que encontrei num seminário na Índia, que o Fome Zero não existe na prática. Perguntei qual é, então, a idéia. Constrangido, ele admitiu que já houve várias idéias no papel, que elas mudaram muito e ignorava qual era a última". Surpresa maior, no entanto, EK teve quando o senador informou que o registro civil gratuito fazia parte do Fome Zero...


José Serra escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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