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São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma questão meramente jurídica

WERNER BECKER

O sr. Siegfried Ellwanger, editor, cidadão brasileiro, editou vários livros anteriormente já editados no Brasil e cuja circulação nunca sofreu nenhum embaraço. Editou também um livro de sua autoria, em que pretende demonstrar que as versões publicadas sobre a Segunda Guerra se revestem da costumeira parcialidade com que os vencedores se referem aos vencidos.
Vários membros da comunidade judaica em Porto Alegre representaram no Ministério Público, contra o editor, entendendo que a sua atividade caracterizava crime. Denunciado, foi o réu absolvido em primeira instância. Provendo o recurso, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul condenou o editor a dois anos de reclusão, averbando a pena de imprescritível por entender tratar-se de crime de racismo.
Consultado sobre se aceitaria a causa que a muitos pareceu antipática, respondi que, no exercício do direito de defesa, nunca cuidei da simpatia ou da comodidade das minhas causas. Relembrei que durante os anos de autoritarismo defendi mais de 300 pessoas, judeus inclusive, acusadas de subversão comunista e que as chamas das inquisições ideológicas jamais me assustaram. Examinando o fato imputado, cheguei à conclusão da inexistência de delito, pois configurava divulgação de pensamento. E cheguei a outra conclusão que me pareceu ainda mais evidente.
Não se tratando os judeus de uma raça -afirmativa defendida pelos mais eminentes judeus-, à evidência que não se poderia averbar o delito de imprescritível, característica exclusiva dos crimes de racismo prevista no artigo 5, XLII da Constituição brasileira. Ingressei, então, com um pedido de habeas corpus, não ousando nem mesmo afirmar que a conduta do réu não consistia em crime. Limitei-me a pedir que não se averbasse a condenação como imprescritível.
O cerne da questão me pareceu simples e puramente jurídico. Aleguei que, se o inciso XLI do artigo 5 da Constituição Federal increpa como crime toda a conduta discriminatória, o inciso imediato restringe a imprescritibilidade somente ao crime de racismo. Se a Constituição quisesse afirmar a imprescritibilidade de todas as condutas discriminatórias, teria dito "todas as condutas discriminatórias", e não se referiria apenas ao crime de racismo.
Questão tão singela e meramente técnica jamais me pareceu capaz de ferir qualquer suscetibilidade.


A expressão de raiva e indignação era vista em várias faces, a cada palavra proferida pelo ministro


Foi com espanto que vi o plenário do Supremo Tribunal Federal, no dia 9 de abril, lotado por membros da comunidade judaica, inclusive presente o rabino Sobel, vestido a caráter, exigindo uma reparação pelo voto, estritamente jurídico, proferido por esse ícone da magistratura brasileira, o ministro Moreira Alves. A expressão de raiva e indignação era vista em várias faces, a cada palavra proferida pelo ministro. Em compensação, cada palavra do ministro Maurício Corrêa, em prol da tese contrária, era recebida com claro entusiasmo, dando a impressão de que o plenário da Suprema Corte havia se transformado num Maracanã jurídico.
Com esse relato, pretendo esclarecer apenas que o habeas corpus impetrado não constitui agressão a ninguém e não faz apologia de nenhuma idéia política ou religiosa. O impetrante, no caso eu, não está a serviço de nenhuma tarefa ou ideologia deletéria, como no passado também nunca foi pago, como insinuado algumas vezes, pelo ouro de Moscou. Apenas pretende que a pena de um réu não seja exacerbada além do permitido pela Constituição.
Peço também que o santo nome dos direitos humanos não seja tomado em vão, para que as labaredas do radicalismo não levem a uma condenação maior do que o direito brasileiro prevê. O direito penal brasileiro, dentro da nossa tradição de país generoso, não conhece instituições aplaudidas em outras terras, como a da vingança e da represália.

Werner Becker, 67, advogado, foi vereador em Porto Alegre, pelo PMDB (1982-88), e jornalista. Impetrou habeas corpus, no STF, contra decisão do STJ de negar habeas corpus a Siegfried Ellwanger. Ellwanger foi condenado, pela Justiça do Rio Grande do Sul, por racismo em razão da edição e venda de livros com alegado conteúdo anti-semita.


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