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TENDÊNCIAS/DEBATES
Uma questão meramente jurídica
WERNER BECKER
O sr. Siegfried Ellwanger, editor, cidadão brasileiro, editou vários livros anteriormente já editados no Brasil
e cuja circulação nunca sofreu nenhum
embaraço. Editou também um livro de
sua autoria, em que pretende demonstrar que as versões publicadas sobre a
Segunda Guerra se revestem da costumeira parcialidade com que os vencedores se referem aos vencidos.
Vários membros da comunidade judaica em Porto Alegre representaram
no Ministério Público, contra o editor,
entendendo que a sua atividade caracterizava crime. Denunciado, foi o réu absolvido em primeira instância. Provendo o recurso, o Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul condenou
o editor a dois anos de reclusão, averbando a pena de imprescritível por entender tratar-se de crime de racismo.
Consultado sobre se aceitaria a causa
que a muitos pareceu antipática, respondi que, no exercício do direito de
defesa, nunca cuidei da simpatia ou da
comodidade das minhas causas. Relembrei que durante os anos de autoritarismo defendi mais de 300 pessoas, judeus
inclusive, acusadas de subversão comunista e que as chamas das inquisições
ideológicas jamais me assustaram. Examinando o fato imputado, cheguei à
conclusão da inexistência de delito, pois
configurava divulgação de pensamento.
E cheguei a outra conclusão que me pareceu ainda mais evidente.
Não se tratando os judeus de uma raça
-afirmativa defendida pelos mais eminentes judeus-, à evidência que não se
poderia averbar o delito de imprescritível, característica exclusiva dos crimes
de racismo prevista no artigo 5, XLII da
Constituição brasileira. Ingressei, então,
com um pedido de habeas corpus, não
ousando nem mesmo afirmar que a
conduta do réu não consistia em crime.
Limitei-me a pedir que não se averbasse
a condenação como imprescritível.
O cerne da questão me pareceu simples e puramente jurídico. Aleguei que,
se o inciso XLI do artigo 5 da Constituição Federal increpa como crime toda a
conduta discriminatória, o inciso imediato restringe a imprescritibilidade somente ao crime de racismo. Se a Constituição quisesse afirmar a imprescritibilidade de todas as condutas discriminatórias, teria dito "todas as condutas discriminatórias", e não se referiria apenas
ao crime de racismo.
Questão tão singela e meramente técnica jamais me pareceu capaz de ferir
qualquer suscetibilidade.
A expressão de raiva e indignação era vista em várias faces, a cada palavra proferida pelo ministro
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Foi com espanto que vi o plenário do
Supremo Tribunal Federal, no dia 9 de
abril, lotado por membros da comunidade judaica, inclusive presente o rabino Sobel, vestido a caráter, exigindo
uma reparação pelo voto, estritamente
jurídico, proferido por esse ícone da
magistratura brasileira, o ministro Moreira Alves. A expressão de raiva e indignação era vista em várias faces, a cada
palavra proferida pelo ministro. Em
compensação, cada palavra do ministro
Maurício Corrêa, em prol da tese contrária, era recebida com claro entusiasmo, dando a impressão de que o plenário da Suprema Corte havia se transformado num Maracanã jurídico.
Com esse relato, pretendo esclarecer
apenas que o habeas corpus impetrado
não constitui agressão a ninguém e não
faz apologia de nenhuma idéia política
ou religiosa. O impetrante, no caso eu,
não está a serviço de nenhuma tarefa ou
ideologia deletéria, como no passado
também nunca foi pago, como insinuado algumas vezes, pelo ouro de Moscou.
Apenas pretende que a pena de um réu
não seja exacerbada além do permitido
pela Constituição.
Peço também que o santo nome dos
direitos humanos não seja tomado em
vão, para que as labaredas do radicalismo não levem a uma condenação maior
do que o direito brasileiro prevê. O direito penal brasileiro, dentro da nossa
tradição de país generoso, não conhece
instituições aplaudidas em outras terras, como a da vingança e da represália.
Werner Becker, 67, advogado, foi vereador em Porto Alegre, pelo PMDB (1982-88), e jornalista.
Impetrou habeas corpus, no STF, contra decisão
do STJ de negar habeas corpus a Siegfried Ellwanger. Ellwanger foi condenado, pela Justiça do Rio Grande do Sul, por racismo em razão da
edição e venda de livros com alegado conteúdo anti-semita.
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