São Paulo, terça-feira, 26 de novembro de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Rumo

O mundo , segundo lugar-comum, vive sob a ditadura da falta de alternativa. As formas tradicionais do esquerdismo malograram. Entretanto, a social-democracia convencional, que recorre a políticas sociais compensatórias para humanizar a ordem existente, também se mostrou insuficiente. Incapaz, mesmo nos países ricos, de superar desigualdades debilitantes. Ou de difundir a capacidade de inovar sem que se precise, para criar o novo, da pressão exercida por guerras e crises econômicas.
Hoje, porém, combinação de experiências práticas e de descobertas intelectuais começa a subverter a ditadura da não-alternativa. De um lado, as nações em desenvolvimento que mais êxito vêm tendo em se fortalecer são justamente aquelas, como a China, mais férteis em inovações institucionais. É a supressão das liberdades o que limita, nesses países, o potencial do impulso inovador. De outro lado, o pensamento conclui, pouco a pouco, que reformas podem ser profundas no desfecho sem deixarem de ser gradativas no método. A idéia da substituição por inteiro de sistemas sociais e econômicos era apenas fantasia que nos desviava das oportunidades transformadoras.
Não há país que sofra mais do que o nosso com a falta de alternativa. Nenhum reúne agora melhores condições para desbravar caminho que dê alento à humanidade.
Para ter rumo, não é preciso mapear toda a trajetória. Basta escolher a direção e conhecer os primeiros passos. Políticas aparentemente corriqueiras podem, por seu efeito combinado, produzir transformações radicais. Para isso, dogma não presta. Vontade e visão são, porém, indispensáveis.
O Brasil já tem a idéia desse rumo e os meios para trilhá-lo. Oito séries de medidas marcam seus primeiros passos. Primeiro, conseguir aprovar reformas da previdência e da tributação que consolidem a situação fiscal do Estado, mas desonerem, ao máximo possível, a produção. Segundo, forjar instituições que mobilizem a poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo, diminuindo nossa dependência do capital estrangeiro. Terceiro, construir mercado de consumo em massa graças ao aumento progressivo da participação dos salários na renda nacional e à unificação dos mercados formal e informal de trabalho. Quarto, transformar a política industrial e agrária em instrumento para descentralizar o acesso ao crédito, à tecnologia e aos mercados, fazendo dos empreendedores emergentes novo motor de crescimento, ao mesmo tempo que se facilita a formação de grandes empresas, capazes de competir em escala mundial. Quinto, melhorar a qualidade do ensino público e da saúde pública para capacitar os brasileiros e para formar base duradoura de apoio à ação democratizadora do Estado. Sexto, ajudar diretamente os que mais sofrem, nos extremos da miséria, para que a indecência não envenene o desenvolvimento. Sétimo, usar o financiamento público das campanhas para conter a influência do dinheiro sobre a política. Oitavo, reposicionar o Brasil no mundo, multiplicando as parcerias políticas e econômicas que nos abram espaço não somente para exportar o que produzimos, mas também para mudar o que somos.
Basta juntar elementos, ainda que incompletos, de cada uma dessas oito iniciativas para transformar a fundo a situação e as perspectivas do Brasil. Essa é a obra, modesta nas aparências, viável nos meios e revolucionária nos efeitos, que o novo governo tem tudo para executar. Executando-a, será fiel a si mesmo e à nação.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

http://www.law.harvard.edu/unger



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