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TENDÊNCIAS/DEBATES
Deve ser aprovado o projeto de lei que descriminaliza a ortotanásia?
SIM
O direito de viver e de morrer
CARLOS VITAL LIMA
O BEM da vida e a dignidade humana são patrimônios e valores supremos. Ao confrontá-los, qual deve preponderar sobre o
outro? Essa resposta não pode ser genérica ou cartesiana, mas relativa e de
mérito individual. No Brasil, o tema
ganha relevância com o avanço no
Congresso Nacional do projeto de lei
do senador Gerson Camata (PMDB-ES), que retira a ortotanásia do rol das
ilicitudes penais.
O texto, que seguiu para a Câmara
dos Deputados, dá ao cidadão enfermo grave o direito de morrer com dignidade, sem a obrigatoriedade de uso
de meios desproporcionais em respeito a sua vontade, dando-lhe tão somente conforto físico, psíquico e até
mesmo espiritual, segundo a lógica
dos chamados cuidados paliativos.
A proposta se harmoniza com a resolução 1.805 do Conselho Federal de
Medicina, que, desde 2006, procura
-sob o prisma ético- disciplinar o
uso de tratamentos fúteis ou obsessivos em pacientes em fase terminal.
Na medicina, tornou-se possível
prolongar de maneira indefinida o
processo de morte, à custa de transformação do direito à vida em dever
de sofrimento.
A descontinuidade dessas condutas, com o objetivo de evitar o sofrimento sem razão de ser, não deve ser
interpretada como crime. O processo
de ortotanásia significa a morte no
momento certo, nem apressada, como no caso da eutanásia, nem prolongada, como no caso da distanásia.
Seu advento evita prolongamentos
irracionais e cruéis da vida do paciente, poupando-o -e a sua família- de
todo o desgaste que essa situação
envolve.
De forma geral, as religiões não são
contrárias à ortotanásia. Na Igreja
Católica, há manifestações favoráveis
em três bulas papais. Na encíclica
"Evangelium Vitae", de 1995, o papa
João Paulo 2º opõe-se ao "excesso terapêutico", afirmando ainda que a renúncia a "meios extraordinários ou
desproporcionados" para prolongar a
vida não equivale ao suicídio ou à eutanásia. Para ele, essa renúncia exprime "a aceitação da condição humana
defronte a morte".
Efetivamente, esse tema ultrapassa
o saber teórico e atinge a prática. Em
meio a um universo de técnicas de
mecanização da vida, a preservação
da dignidade humana no processo de
morte por doença constitui um imenso desafio ético.
Nesse campo, despontam o direito
à vida e o direito à dignidade. O caminho que nos leva ao encontro dessa
dignidade é o da união da fé, da lei e da
razão. Porém, não menos imprescindível é a convicção de que a vontade
que se subordina à lei é a mesma que a
prescreve e interpreta.
Para o melhor dimensionamento
da complexidade das questões envolvidas, não se pode ignorar alguns dilemas de final de vida.
Como contribuições às soluções
desejadas, estão as formas seguras de
antecipação da vontade, como o testamento vital -documento no qual a
pessoa consigna suas vontades quanto aos cuidados médicos que pretende ou não receber, se puder se expressar ou se encontrar em estado de incapacidade- e a nomeação de procurador para consentimento aos cuidados de saúde.
O debate ao redor de tema tão delicado tem prosperado em vários países. Na Espanha, em 2000, foi aprovada a lei de vontades antecipadas, que
prevê a existência do testamento vital. Desde 2006, em Portugal, tramita
um projeto que regula o direito de
formular diretivas antecipadas da
vontade. No Brasil, acompanhamos
atentamente o debate no Congresso,
confiantes na sensibilidade dos parlamentares sobre o tema.
Enfim, o direito de viver a própria
vida e o direito de morrer a própria
morte, o primeiro e último dos direitos potestativos (aqueles que independem de terceiros para serem exercidos), devem ser observados à luz da
vontade do paciente em fase terminal. Trata-se do respeito ao direito
daqueles que desejam seguir sua jornada, como Karol Wojtyla, o papa
João Paulo 2º, que recusou sua internação e permaneceu em casa, aguardando sua passagem em paz e com
dignidade.
CARLOS VITAL LIMA , 59, clínico geral, é primeiro vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Bioética e da Sociedade Brasileira de Direito Médico.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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