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São Paulo, segunda-feira, 27 de janeiro de 2003

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BORIS FAUSTO

Inútil sacrifício

Uma das virtudes, entre muitas, dos dois volumes de Elio Gaspari sobre o regime militar ("A Ditadura Envergonhada" e "A Ditadura Escancarada") é de provocar no leitor uma sensação de profunda tristeza.
Esse sentimento nasce da constatação de que aqueles anos marcaram o sacrifício de centenas de jovens, embalados no sonho de derrubar pelas armas a ditadura. Grandiosa tarefa que não buscava o reencontro com a democracia, adjetivada pejorativamente de formal, mas o triunfo de um governo popular revolucionário, a caminho da redenção socialista.
É consolador acreditar que a inclinação pela luta armada foi consequência do fechamento dos canais de expressão política, após a imposição do AI-5, em 1968. Essa é, porém, apenas uma parte da verdade. O livro de Gaspari relembra e acentua que a ilusão revolucionária nasceu muito cedo, desde as primeiras aventuras do pós-64, até a formação das chamadas organizações de vanguarda, que assumiram a teoria do foco, as alternativas da guerrilha urbana ou rural, as ações justiceiras exemplares.
Menosprezar o sacrifício dessa gente, que se entregou a uma luta sem esperança e sem saída, e foi estraçalhada pela ditadura, seria simplesmente ignóbil. Eles não foram presas de um delírio coletivo. Suas ações resultaram de certas concepções correntes naquela época, o que não quer dizer que possamos nos dispensar de lembrá-las como receita segura para o desastre.
Nos anos 60 do século passado, a ilusão revolucionária, na América Latina, chegou ao paroxismo. Se a China parecia um exemplo nítido de superação do pântano em que se metera a revolução russa (era muito mais do que um pântano), em nosso continente brilhava a estrela da revolução cubana. Seu triunfo marcava um corte com velhos métodos, além de aplicar um golpe quase impensável no imperialismo.
Os velhos partidos de esquerda, com seus lentos movimentos, suas infinitas discussões, sua esperança posta em uma classe universal que não pretendia ser universal, pareciam definitivamente liquidados. Que atração para os jovens militantes a façanha realizada por guerrilheiros quase tão jovens como eles, mudando aparentemente o mundo com imensa ousadia!
Produto de uma conjuntura, o feito castrista gerou a falsa certeza, alimentada por Fidel Castro, de que era possível transplantar a experiência cubana a outros países da América Latina. Mais ainda, que esse transplante era desejável. Só que, em vez de criar uma nova Cuba, ou um novo Vietnã pela via da guerra prolongada, as ações guerrilheiras foram um excelente pretexto para que a ditadura desse um salto na liquidação das liberdades e na introdução da tortura como método de governo.
Desculpando-me pela eloquência, penso que vale a pena extrair desses tempos sombrios uma segura lição. O caminho da construção de um Brasil mais justo não passa pelos atos heróicos, pelo voluntarismo sem limites, pela sacralização de ditadores. Antes, ele vai resultando de um esforço contínuo, visível ou anônimo, conforme o caso, que abrange os bons governos e a sociedade.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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