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BORIS FAUSTO
Inútil sacrifício
Uma das virtudes, entre muitas, dos
dois volumes de Elio Gaspari sobre o
regime militar ("A Ditadura Envergonhada" e "A Ditadura Escancarada") é
de provocar no leitor uma sensação de
profunda tristeza.
Esse sentimento nasce da constatação de que aqueles anos marcaram o
sacrifício de centenas de jovens, embalados no sonho de derrubar pelas
armas a ditadura. Grandiosa tarefa
que não buscava o reencontro com a
democracia, adjetivada pejorativamente de formal, mas o triunfo de um
governo popular revolucionário, a caminho da redenção socialista.
É consolador acreditar que a inclinação pela luta armada foi consequência
do fechamento dos canais de expressão política, após a imposição do AI-5,
em 1968. Essa é, porém, apenas uma
parte da verdade. O livro de Gaspari
relembra e acentua que a ilusão revolucionária nasceu muito cedo, desde
as primeiras aventuras do pós-64, até
a formação das chamadas organizações de vanguarda, que assumiram a
teoria do foco, as alternativas da guerrilha urbana ou rural, as ações justiceiras exemplares.
Menosprezar o sacrifício dessa gente, que se entregou a uma luta sem esperança e sem saída, e foi estraçalhada
pela ditadura, seria simplesmente ignóbil. Eles não foram presas de um
delírio coletivo. Suas ações resultaram
de certas concepções correntes naquela época, o que não quer dizer que
possamos nos dispensar de lembrá-las como receita segura para o desastre.
Nos anos 60 do século passado, a ilusão revolucionária, na América Latina, chegou ao paroxismo. Se a China
parecia um exemplo nítido de superação do pântano em que se metera a revolução russa (era muito mais do que
um pântano), em nosso continente
brilhava a estrela da revolução cubana. Seu triunfo marcava um corte com
velhos métodos, além de aplicar um
golpe quase impensável no imperialismo.
Os velhos partidos de esquerda, com
seus lentos movimentos, suas infinitas
discussões, sua esperança posta em
uma classe universal que não pretendia ser universal, pareciam definitivamente liquidados. Que atração para os
jovens militantes a façanha realizada
por guerrilheiros quase tão jovens como eles, mudando aparentemente o
mundo com imensa ousadia!
Produto de uma conjuntura, o feito
castrista gerou a falsa certeza, alimentada por Fidel Castro, de que era possível transplantar a experiência cubana a outros países da América Latina.
Mais ainda, que esse transplante era
desejável. Só que, em vez de criar uma
nova Cuba, ou um novo Vietnã pela
via da guerra prolongada, as ações
guerrilheiras foram um excelente pretexto para que a ditadura desse um
salto na liquidação das liberdades e na
introdução da tortura como método
de governo.
Desculpando-me pela eloquência,
penso que vale a pena extrair desses
tempos sombrios uma segura lição. O
caminho da construção de um Brasil
mais justo não passa pelos atos heróicos, pelo voluntarismo sem limites,
pela sacralização de ditadores. Antes,
ele vai resultando de um esforço contínuo, visível ou anônimo, conforme o
caso, que abrange os bons governos e
a sociedade.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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