São Paulo, segunda-feira, 27 de fevereiro de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

O sobe-e-desce

RIO DE JANEIRO - Fui trocar peça de um novo notebook num edifício enorme, no centro do Rio, famoso pela oferta de parafernálias eletrônicas. Os cinco primeiros andares não eram servidos por elevadores, mas por escadas rolantes em imensos halls cheios de gente.
A peça que procurava era difícil de encontrar. Dois funcionários da loja foram fazer buscas complicadas e me deixaram junto a uma escada rolante, aliás duas, uma que descia e outra que subia.
Fiquei seguramente mais de meia hora me distraindo com as caras dos que subiam e desciam. Nunca tivera tempo, oportunidade e vontade para tal e tanto. Em geral, e quando é preciso, sou eu que subo ou desço conforme as necessidades da circunstância, na qual procuro não colocar qualquer pompa.
Vai daí, fiquei admirado de nunca ter admirado o espetáculo dos sobes-e-desces do restante da humanidade. Nos elevadores, vamos todos calados, procurando manter um mínimo de decência social ou alheamento. Estamos ali provisoriamente, nada que nos comprometa.
Na escada rolante é diferente. O sujeito ao subir adquire uma aura, um halo em torno da cabeça. Como os santos nas igrejas. A expressão corporal torna-se ovante, alguns até ganham certa majestade, embora sejam contínuos ou faxineiros. Todos se sentem num momento importante, acreditam que ali, subindo mecanicamente de um andar para outro, estejam dominando as contingências humanas, usufruem daquilo que os americanos chamam de "finest hour".
Na descida é quase a mesma coisa, só que ao contrário. Alguns chegam a ficar cabisbaixos, não porque quebraram a cara no que foram fazer ou procurar. Descer é sempre incômodo, sobretudo para quem subiu tão pouco. A cara dos que descem nunca é a mesma da dos que sobem. Na subida, a maioria está mal-informada, como sempre. Na descida, bem realizado ou não, o sujeito acha que cumpriu uma função. Aliviado, voltará para a vida lá fora, que não sobe nem desce, monotonamente é apenas chata.


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