São Paulo, sábado, 27 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os "assassinatos seletivos" praticados por Israel são legítimos?

NÃO

Gramáticas do terror

DEMÉTRIO MAGNOLI

O terrorismo define-se como a ação política que luta contra o poder estabelecido por meio de atos de violência dirigidos a civis ou militares não-combatentes. A clássica definição deve ser lembrada, pois a "guerra ao terror" deturpou a linguagem enquanto envenenava a política internacional.
Os fanáticos da Al Qaeda praticam o terror quando lançam aviões contra as torres do World Trade Center ou explodem trens em Madri. Mas os autores de atentados contra soldados ocupantes no Iraque não podem ser classificados como terroristas, pois seus alvos são forças combatentes. A linguagem de George Bush rotula uns e outros como terroristas, de modo a persuadir a opinião pública a acreditar que a política mundial é um confronto entre o Ocidente e o "Terror".
A linguagem de Bush fornece um instrumento de incalculável valor ideológico para os Estados que enfrentam movimentos de contestação da ordem interna. Depois do 11 de Setembro de 2001, pelo mundo afora, esses movimentos passaram a ser, indiscriminadamente, taxados de terroristas. Israel, em particular, declarou a sua própria "guerra ao terror", que tem como alvo o conjunto das instituições e organizações da resistência palestina. O governo Sharon decidiu que o homem-bomba que explode um café em Jerusalém, o líder do Hamas Yasser Arafat e o jovem que lança pedras contra tropas de ocupação na Cisjordânia são, todos eles, "terroristas".
O terror é condenável em todas as suas formas, e não apenas por razões morais. Os terroristas, por mais bela que seja a causa que juram defender e por mais tirânico que seja o regime que combatem, provocam a asfixia da vida política e a militarização das sociedades. Seus atos legitimam a violência dos Estados perante a opinião pública e isolam as oposições que desafiam o poder por meios políticos legítimos. Quase sempre o terror serve aos fins daqueles que declara combater.
Mas a condenação incondicional do terror não deveria borrar a distinção política entre diferentes modalidades de terrorismo. O ETA, na Espanha, e o Hamas, na Palestina, como foi o caso do IRA, no Reino Unido, inscrevem suas ações no contexto de lutas nacionais e as circunscrevem aos limites geográficos de uma entidade estatal. Nesses casos, o "princípio" da recusa categórica a "negociar com o terror", proclamado pelos Estados num estágio do conflito, pode ser modificado em estágio subseqüente, como ocorreu com o IRA e, mais dia menos dia, ocorrerá na Espanha e na Palestina.
A Al Qaeda representa o terror de novo tipo, não pelo caráter mais letal de seus atentados, mas pela natureza escatológica de seu fim político, que é o "império mundial do islã". Nesse caso, não há como "negociar com o terror", pois nada é capaz de satisfazer à aspiração de restauração de uma idade de ouro do islã, que nunca existiu na história e pertence à esfera dos mitos. Mesmo assim, a chave principal do combate ao "terror global" não se encontra na guerra, mas na política. O magnetismo crescente de Osama bin Laden no mundo islâmico depende, antes de tudo, da ocupação israelense da Palestina e da ocupação americana do Iraque. A solução justa desses conflitos é o pressuposto para o isolamento da Al Qaeda e, mais adiante, para a sua eliminação por meios militares e policiais.
O terrorismo é um instrumento de combate do fraco contra o forte. A exceção é o terror de Estado, que resulta da renúncia ao primado do Estado de Direito. Israel pratica o terror de Estado quando utiliza força excessiva nos territórios ocupados, vitimando inocentes, ou quando demole casas de parentes de homens-bomba. A campanha sistemática de "assassinatos seletivos" contra líderes taxados de terroristas pertence ao âmbito do terror de Estado, pois seu princípio operativo é a substituição dos tribunais pelo helicóptero artilhado. O Estado, por definição, é o titular do monopólio da violência legítima. O governo de Ariel Sharon quer o monopólio da violência, mas não se importa com a legitimidade. Não age como um Estado, mas como um aparelho militar guiado pela sua própria lógica, um pouco como os grupos terroristas.
A "guerra ao terror", na versão israelense, representa um risco incalculável, e não apenas para Israel. Logo depois do "assassinato seletivo" do xeque Ahmed Yassin, milhares de árabes, no Cairo, em Amã, na Cisjordânia e em Gaza saíram às ruas oferecendo-se como "mártires" para atentados terroristas, enquanto o Hamas ameaçava mirar "alvos americanos" no mundo inteiro -o Hamas já recuou dessa ameaça, mas a tampa da garrafa que guardava o gênio foi desenroscada.
Para deleite de Bin Laden, o governo de Sharon está construindo uma ponte entre o "terror nacional" na Palestina e o "terror global" da Al Qaeda.


Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia humana pela USP, é editor do periódico "Mundo - Geografia e Política Internacional" e pesquisador do NADD-USP.


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