São Paulo, sexta-feira, 27 de abril de 2007

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JOSÉ SARNEY

Ver, ler e reler

NÃO POR FALTA de livros. Minha coluna de leitura da vez, que tenho por hábito construir ao lado de minha mesa de cabeceira, está alta, mas, por desejo cujas origens identifico como encabulado saudosismo, deu-me vontade de reler anais parlamentares, velhos discursos. Uma certa crise de nostalgia.
Cheguei ao Parlamento, no Rio, em 1955. Fiquei fascinado com o palácio Tiradentes, vendo ali, em carne e osso, os ídolos das nossas lutas políticas da UDN: Afonso Arinos -que veio a transformar-se num grande e glorioso amigo-, Otávio Mangabeira, Adauto Lúcio Cardoso, Prado Kelly, Milton Campos, Bilac Pinto, Aliomar Baleeiro, Oscar Dias Correa, o velho Raul Pilla, do Partido Libertador, os consagrados governistas, Gustavo Capanema, Lúcio Bittencourt, Fernando Ferrari, Vieira de Mello, Tancredo Neves, José Maria Alkmin e -o mais discutido de todos, estrela de primeira grandeza, brilho e fogo- Carlos Lacerda, o próprio ícone da Casa.
O plenário era uma festa de inteligência. Os debates eram os mais fascinantes. Apartes e contra-apartes. Era o Parlamento do século 19, do discurso, onde se esgotava a arte legislativa. Assisti nestes 50 anos às mudanças de estilo, às mudanças do tempo, e sobretudo, à morte dos homens.
Hoje, tenho o sentimento de que o discurso parlamentar vive do instante, da circunstância, das paixões que ele suscita e mata. É o aparte, muitas vezes mais forte que o discurso, é uma discussão jurídica, é um duelo cultural. As páginas tinham perdido a vida, existindo apenas na minha lembrança.
Como exemplo, a memória do discurso de Carlos Lacerda, defendendo-se de ter violado o decoro parlamentar, acusado de traição por ter revelado um telegrama secreto do Itamaraty. Esse discurso, célebre nos anais da Câmara, tinha título -naquela época era norma dar nome aos discursos: "A corrida dos touros embolados". Foi um dia de explosão solar. Todos agradecidos da ventura de assisti-lo. Fui relê-lo, na esperança de matar saudades. Fechei o livro nas primeiras páginas. As luzes do tempo estavam apagadas.
Abri os "Discursos Parlamentares", de Nabuco. Aí, o brilho que estava na minha cabeça, da luta da Abolição, também estava sem vida. Como é diferente o Parlamento de hoje, com computador, com blog, portal, site de busca. Os discursos vivem na obstinação do Mão-Santa.
O tempo real encarregou-se de matar as palavras e as notícias. Tudo parece que não acontece, está para acontecer.


jose-sarney@uol.com.br

JOSÉ SARNEY
escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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