São Paulo, segunda-feira, 27 de maio de 2002

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BORIS FAUSTO

O sapato de Cinderela

Os analistas políticos europeus têm procurado entender o avanço da extrema direita no continente, caracterizando-o como uma forma de populismo.
Em um texto integrante de um dossiê sobre o tema, publicado pelo jornal francês "Le Monde" (19/5), Yves Mény recorda uma observação do notável pensador britânico Isaiah Berlin, já lá vão 35 anos. Para Berlin, o fenômeno populista assemelha-se a um "complexo de Cinderela": existe um calçado -a palavra "populismo"- à procura de um pé difícil de encontrar.
É essa dificuldade que os analistas europeus procuram enfrentar, buscando os traços comuns aos líderes da extrema direita, em meio às grandes diferenças que separam, por exemplo, Le Pen, na França, de Pim Fortuyn na Holanda, aliás assassinado no curso de meteórica ascensão. A preocupação central em definir e esclarecer o conteúdo do populismo, ou melhor dizendo o conteúdo dos populismos, inverteu-se assim, no plano geográfico, passando da América Latina para a Europa.
Neste lado do Atlântico, a grande fase do populismo -Vargas no Brasil, Perón na Argentina, Ibáñez no Chile- teve muitos traços distintivos com relação ao que ocorre hoje no continente europeu. Na América Latina, se o desprezo pelos partidos, assim como a existência de lideranças carismáticas, foi elemento integrante do que poderíamos chamar de populismo clássico, suas bases sociais foram outras, respondendo a circunstâncias históricas que nada têm a ver com a Europa atual.
A força do populismo clássico latino-americano residiu na capacidade de aglutinação do poder do Estado, articulando um tripé que aproximava a chamada burguesia nacional, beneficiada pelo guarda-chuva protetor do Estado, e a classe operária organizada, participante -como sócia menor- dos êxitos do desenvolvimento econômico.
Esse populismo desapareceu, em razão de diferentes fatores. No caso brasileiro, a burguesia nacional fugiu do radicalismo populista de Jango e especialmente de Brizola, apoiando o golpe militar de 1964; no fim da década de 70, começou a crise do Estado e do modelo econômico desenvolvimentista que o regime militar mantivera com retoques; o movimento operário ressurgiu, ganhando autonomia e alterando suas relações com o empresariado e o Estado.
Se o populismo clássico morreu, as formas de um neo-populismo desenharam-se nas últimas décadas. Olhando para os nomes da cúpula política, certamente não é o caso do presidente Fernando Henrique Cardoso, que, em oito anos de governo, foi avesso a essa tendência. Mas é o caso de Fernando Collor -representante estrondoso, mas não único, do estilo populista.
Hoje, observando a corrida presidencial, vemos traços do neo-populismo -liderança carismática, manipulação retórica de programas de governo, certo menosprezo das organizações partidárias, em alguns casos- no comportamento de alguns candidatos, embora diferentes entre si.
O sapato de Cinderela não está, por estas bandas, à procura de um pé. Pelo contrário, há gente com altas pretensões, tratando de calçá-lo, em busca de êxito.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.

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