São Paulo, quarta, 27 de maio de 1998

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De retirantes e ambulantes



A tentativa de incriminar Stedile foi um atentado a um direito fundamental, o de livre expressão
PAUL SINGER

O que talvez tenha sido a última grande seca nordestina do século chegou à opinião pública envolto no noticiário sobre saques. O progresso, a urbanização e a industrialização alcançados neste século não serviram em nada para mudar essa realidade atroz. Periodicamente, a falta de chuva reduz milhões de moradores do semi-árido nordestino à condição de párias famintos, que têm de furtar para poder sobreviver.
A reação das altas autoridades da República é a mais tradicional possível: o flagelo é inevitável, mas está sendo explorado politicamente pelos que "incitam" os esfomeados a saquear. É como sempre responderam, desde o Império e a República Velha, os governantes quando confrontados por greves, manifestações de massa, ocupações (invasões?) de imóveis ou saques.
Nosso atual governo segue a mesma linha: saques são violações intoleráveis da ordem pública, que têm de ser reprimidas pela Justiça. E a fome, o que é? Certamente, ela viola uma ordem natural -o direito à vida- que é mais importante que o ordenamento jurídico. O qual, como nos ensinam os melhores juristas, prevê e justifica o furto em situação de extrema necessidade.
Pela primeira vez desde o fim do regime militar, a igreja (pela voz autorizada dos bispos) e a Justiça (pela voz do presidente do STF) estão em confronto com o Executivo, na pessoa do próprio presidente. Tema do confronto: a incúria do governo e sua intolerância perante o que não passa de reações de flagelados em defesa da própria vida.
João Pedro Stedile, o conhecido e respeitado dirigente do MST, foi incriminado pelo ministro da Justiça por um delito de imprensa -fazer declarações aos jornais em defesa dos retirantes que saqueiam para matar a fome.
A acusação de incitação ao crime é um tanto ridícula: pressupõe que os retirantes precisaram esperar a chegada dos jornais para ter a idéia de se apoderar de alimentos, muitos estocados em armazéns do governo, que não cumpriu o dever elementar de distribuí-los.
Portanto, a tentativa de incriminar Stedile (felizmente gorada, graças à clarividência de um magistrado) foi um atentado a um direito humano fundamental, o de livre expressão. Se ele fosse preso e eventualmente condenado, qualquer pessoa que exprimisse publicamente, como faço, solidariedade aos saqueadores poderia sofrer penalidade.
Esses fatos são agravados pelo contexto em que ocorrem. O Brasil sofre a pior crise de emprego pelo menos desde que há estatísticas confiáveis sobre o fato. Nunca tantos careceram de trabalho e de meios de vida, havendo uma clara transformação do desemprego em sua abrangência e em sua duração.
Antes da presente crise (que data da "débâcle" econômica provocada pelo Plano Collor, em 1990), os desempregados, na maioria, tinham pouca ou nenhuma qualificação; agora, parte expressiva deles é qualificada, inclusive com diplomas de curso superior. Muitos exerceram cargos de chefia.
A duração média do desemprego aumentou sensivelmente, sendo grande o número dos que estão sem trabalho há mais de um ano. Os efeitos sociais e psicológicos do desemprego de longa duração são devastadores: perda de auto-estima, separação da família, queda no alcoolismo ou na doença mental. Os retirantes da seca que chegam às cidades encontram todos os mercados acessíveis aos que não têm capital inteiramente saturados.
Para coroar, em São Paulo, o prefeito resolveu expulsar das ruas dezenas de milhares de ambulantes para "restaurar a lei e a ordem". Com isso, acrescentou ao enorme exército industrial de reserva mais um considerável contingente de sem-trabalho.
Diante da crise social, governo federal e municipal se dão as mãos. Retirantes e ambulantes, em seu desamparo, representam, do ponto de vista das classes possuidoras, ameaças à ordem estabelecida. É hora de clamar por mais lucidez e sensibilidade, para que a violência repressiva não agrave o sofrimento causado pela injustiça social.

Paul Singer, 64, economista, é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Foi secretário municipal do Planejamento de São Paulo (gestão Luiza Erundina).



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