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ARIANO SUASSUNA
Mocinha
Em 1990, quando tomei posse de
minha cadeira na Academia Brasileira de Letras, agi de modo a ligar o
mais possível a cerimônia, o uniforme, o colar e a espada aos rituais de
festa do nosso povo. Eu lera, de Gandhi, uma frase que me impressionou
profundamente. Dizia ele que um indiano verdadeiro e sincero, mas pertencente a uma das classes mais poderosas de seu país, não deveria nunca
vestir uma roupa feita pelos ingleses.
Primeiro, porque estaria se acumpliciando com os invasores. Depois, porque, com isso, tiraria das mulheres pobres da Índia um dos poucos mercados de trabalho que ainda lhes restavam.
A partir daí, passei a usar somente
roupas feitas por uma costureira popular, Edite Minervina. E também foi
ela quem cortou e costurou meu uniforme acadêmico, bordado por Cicy
Ferreira. Isaías Leal fez o colar e a espada, unindo, nesta, num só emblema, a zona da mata e o sertão.
Naquele ano, era Miguel Arraes
quem governava Pernambuco. E, como o Estado que me adotou como filho se encarregou da doação normalmente feita ao acadêmico pela terra de
seu nascimento, combinei tudo com o
governador e fizemos, no palácio do
Campo das Princesas, uma espécie de
cerimônia prévia na qual Arraes (que,
como eu, é egresso do Brasil oficial,
mas procura se ligar ao real) faria o
discurso de entrega das insígnias; e artistas populares me entregariam os
adereços feitos por eles: Edite e Cicy, o
fardão, Isaías Leal, o colar, e mestre
Salustiano, a espada (que, na ABL, me
seria entregue por meu mestre Barbosa Lima Sobrinho). Depois que Isaías
Leal me deu o colar, no Recife, pedi à
maior cantadora nordestina, Mocinha
de Passira, que o colocasse em meu
pescoço -uma vez que, na Academia, escolhera para isso outra mulher,
minha querida Rachel de Queiroz.
Como se vê, em tudo, eu tentava
mostrar, do modo canhestro, simbólico e precário que me é possível, que,
apesar de nascido e criado no Brasil
oficial, procuro sempre não esquecer
que existe o Brasil real e é a seu lado
que me alinho em todas as circunstâncias da minha vida.
Foi por tudo isso também que, escrevendo aqui em dezembro do ano
passado, escolhi dois personagens
simbólicos para representarem o Brasil real. Dizia: "O primeiro é Chico
Ambrósio, cabreiro do sertão da Paraíba, homem de sangue predominantemente indígena e jeito aciganado; a outra é Mocinha de Passira, violeira dotada de uma voz impressionante" E concluía: "Na minha opinião, o que devemos fazer é olhar o
Brasil de Chico e Mocinha para seguir
e aprofundar (no campo social, político e econômico) o caminho indicado
por Antônio Conselheiro -aquele
socialismo-de-pobre que, para nós, foi
uma picada aberta em direção ao sol
de Deus".
Nos tempos de desprezo que estamos vivendo em relação à cultura brasileira (e em especial à popular), espero, então, que pelo menos as nossas
universidades percebam a importância dessa cantadora e repentista, que,
como afirmei em meu discurso da
ABL, "significa para mim, para o Brasil e para o nosso povo o mesmo que
Pastora Pavón representava para García Lorca, para a Espanha e para o povo espanhol".
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta
coluna.
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