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JOSÉ SARNEY
Uma vírgula,
nada mais
Nesta coluna , na última sexta-feira, fui atropelado por uma vírgula que me deixou escoriações. Escrevi sobre os protestos contra as reformas tributária e previdenciária.
Procurei vincular o nosso clima ao
debate europeu, e, aí, deu-se o acidente. Recolhi, como abonação, um "revoltado editorial" que tinha lido no
"Le Figaro", no qual o jornal se perguntava, diante da balbúrdia dos protestos, se "ainda havia na França um
Estado de Direito". Não sei por que artes do Diabo apareceu uma vírgula e,
então, o adjetivo "revoltado" passou
para mim e deu-se a tragédia da pergunta sobre "se éramos um Estado de
Direito" colocada a respeito do Brasil,
quando era da França.
Veja-se o estrago que faz uma vírgula, e mais ainda uma palavra bem ou
mal colocada. Hoje, não damos muita
bola para esses detalhes. Todos sabem
que a semântica faz viver e morrer palavras, a linguagem se modifica com o
sotaque, a construção, os neologismos, as palavras arcaicas renascem, as
novas morrem por desuso, enfim, o
que todos chamam a evolução da língua. Mas houve um tempo em que essas coisas eram levadas muito a sério.
Recordemos esta afirmação de Rui
Barbosa, na sua reverência ao rito de
escrever, em que chega a erigir um altar à pontuação: "Nos monumentos
escritos da história, ou da lei, um ponto, ou uma vírgula podem encerrar os
destinos de um mandamento, de uma
instituição ou de uma verdade". Eu
quando leio esse texto fico tremendo
diante da responsabilidade de colocar
vírgulas e pontos! Mas os mestres pensavam assim.
Para somar minhas preocupações
com a vírgula, nesta semana, ao presidir uma sessão do Senado, levantou-se uma emenda de redação em determinado projeto, propondo a substituição da conjunção alternativa "ou"
pela copulativa (!) "e". Aí recordei de
novo Rui Barbosa, que na "Réplica",
em que se defendeu das acusações de
Carneiro Ribeiro, que foi seu professor de português na Bahia, sobre a sua
revisão do Código Civil, escreveu
mais de 20 páginas sobre a vírgula antes do "ou". E citou clássicos que ainda praticavam sem serem acusados
de pródigos de vírgulas. É que os clássicos servem sempre para socorro nos
desvios da língua. Hoje, temos outros
meios mais modernos. Outro dia um
sobrinho meu me disse com a cara
mais ingênua do mundo: "Quem sabe
português é meu programa de computador".
O nosso Ferreira Gullar cunhou essa
sentença sábia que até hoje nos socorre: "A crase não foi feita para humilhar ninguém".
Mas que a coisa é complicada, é.
Uma vírgula mal colocada faz um estrago danado. Não à gramática. Mas
ao pensamento. Esta semana, tive, outra vez, oportunidade de verificar isso.
Um senador acusou outro de determinado comentário que poderia ser
interpretado como resistência a mexer no tempo de aposentadoria, e ele
reagiu: "Não, sou a favor das reformas". Ora, se, depois do não, a vírgula
não estivesse colocada, diria o oposto,
pois sua decisão seria "não sou a favor
das reformas". O padre Vieira já advertia desse perigo, dando a possibilidade de passarmos de crentes a hereges, com uma simples vírgula. E dava
exemplo: diz o Evangelho sobre a visita dos discípulos ao sepulcro de Cristo: "Ressuscitou, não está aqui". Se a
pontuação fosse diferente, este dogma estava devastado: "Ressuscitou?
Não. Está aqui". E toda a Ressurreição
vinha abaixo. Veja-se o estrago da
pontuação!
Assim, devemos ter cuidado com as
palavras e até mesmo com a pontuação e a entonação.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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