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São Paulo, sexta-feira, 27 de junho de 2003

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JOSÉ SARNEY

Uma vírgula, nada mais

Nesta coluna , na última sexta-feira, fui atropelado por uma vírgula que me deixou escoriações. Escrevi sobre os protestos contra as reformas tributária e previdenciária.
Procurei vincular o nosso clima ao debate europeu, e, aí, deu-se o acidente. Recolhi, como abonação, um "revoltado editorial" que tinha lido no "Le Figaro", no qual o jornal se perguntava, diante da balbúrdia dos protestos, se "ainda havia na França um Estado de Direito". Não sei por que artes do Diabo apareceu uma vírgula e, então, o adjetivo "revoltado" passou para mim e deu-se a tragédia da pergunta sobre "se éramos um Estado de Direito" colocada a respeito do Brasil, quando era da França.
Veja-se o estrago que faz uma vírgula, e mais ainda uma palavra bem ou mal colocada. Hoje, não damos muita bola para esses detalhes. Todos sabem que a semântica faz viver e morrer palavras, a linguagem se modifica com o sotaque, a construção, os neologismos, as palavras arcaicas renascem, as novas morrem por desuso, enfim, o que todos chamam a evolução da língua. Mas houve um tempo em que essas coisas eram levadas muito a sério. Recordemos esta afirmação de Rui Barbosa, na sua reverência ao rito de escrever, em que chega a erigir um altar à pontuação: "Nos monumentos escritos da história, ou da lei, um ponto, ou uma vírgula podem encerrar os destinos de um mandamento, de uma instituição ou de uma verdade". Eu quando leio esse texto fico tremendo diante da responsabilidade de colocar vírgulas e pontos! Mas os mestres pensavam assim.
Para somar minhas preocupações com a vírgula, nesta semana, ao presidir uma sessão do Senado, levantou-se uma emenda de redação em determinado projeto, propondo a substituição da conjunção alternativa "ou" pela copulativa (!) "e". Aí recordei de novo Rui Barbosa, que na "Réplica", em que se defendeu das acusações de Carneiro Ribeiro, que foi seu professor de português na Bahia, sobre a sua revisão do Código Civil, escreveu mais de 20 páginas sobre a vírgula antes do "ou". E citou clássicos que ainda praticavam sem serem acusados de pródigos de vírgulas. É que os clássicos servem sempre para socorro nos desvios da língua. Hoje, temos outros meios mais modernos. Outro dia um sobrinho meu me disse com a cara mais ingênua do mundo: "Quem sabe português é meu programa de computador".
O nosso Ferreira Gullar cunhou essa sentença sábia que até hoje nos socorre: "A crase não foi feita para humilhar ninguém".
Mas que a coisa é complicada, é. Uma vírgula mal colocada faz um estrago danado. Não à gramática. Mas ao pensamento. Esta semana, tive, outra vez, oportunidade de verificar isso. Um senador acusou outro de determinado comentário que poderia ser interpretado como resistência a mexer no tempo de aposentadoria, e ele reagiu: "Não, sou a favor das reformas". Ora, se, depois do não, a vírgula não estivesse colocada, diria o oposto, pois sua decisão seria "não sou a favor das reformas". O padre Vieira já advertia desse perigo, dando a possibilidade de passarmos de crentes a hereges, com uma simples vírgula. E dava exemplo: diz o Evangelho sobre a visita dos discípulos ao sepulcro de Cristo: "Ressuscitou, não está aqui". Se a pontuação fosse diferente, este dogma estava devastado: "Ressuscitou? Não. Está aqui". E toda a Ressurreição vinha abaixo. Veja-se o estrago da pontuação!
Assim, devemos ter cuidado com as palavras e até mesmo com a pontuação e a entonação.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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