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São Paulo, sexta-feira, 27 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A comunidade judaica e o Fome Zero

JACK TERPINS

Há poucas semanas o papa João Paulo 2º recebeu em audiência privada um grupo de lideranças judaicas de todo o mundo. No encontro era evidente o esforço dele em colocar todos à vontade e transmitir sua opinião no contexto do relacionamento judaico-cristão. Era importante o papa se manifestar a respeito dos vários temas que preocupam judeus e cristãos, alguns localizados, como o conflito no Oriente Médio, e outros, como a fome e a miséria, que dispensam privilégios geográficos. Falou-se da necessidade de construir o túnel, que ainda não existe e no fundo do qual possivelmente se verá uma luz. Mas, até lá, está sendo um longo caminho pavimentado com o sangue de fúrias e decepções, como se as assinaturas perdessem o valor, os apertos de mão não tivessem sentido e palavras empenhadas não tivessem seriedade.
O papa pediu a ajuda de todos ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva na sua luta contra a fome. E, ao ser informado de que a comunidade judaica tem um projeto a respeito, sugeriu que a iniciativa dos judeus do Brasil servisse de exemplo às demais comunidades. Como, aliás, foi ao longo destes cinco séculos, durante os quais os judeus passaram pela história, dialogaram com ela e se envolveram e participaram das coisas e das causas do Brasil, apesar de a Inquisição os ter perseguido.
Imagina-se que, ao convocar os brasileiros, o presidente da República pretenda com eles repartir as esperanças, a perplexidade e os problemas e fazer da desigualdade, do sofrimento, da humilhação e da desumanização o ponto de partida para o exercício da dignidade e para a expressão da alegria. Dessa forma, a comunidade judaica, por meio de suas lideranças e dirigentes em todos os Estados, ouviu o chamado, aceitou a tarefa e vai encarar o desafio de dar sua contribuição aos esforços do governo para reduzir a miséria e diminuir o número de pobres nas estatísticas.
Isto é, a comunidade judaica decidiu assumir parte das responsabilidades de um município no noroeste de Minas Gerais, no vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do país. Itinga tem 14 mil habitantes, 400 telefones e nenhuma comunicação por internet. A abnegação de um padre construiu o hospital cuja pedra fundamental foi lançada por Lula em 1993. Esse foi o modo que os judeus do Brasil encontraram para se engajarem no Fome Zero.


A comunidade judaica vai encarar o desafio de dar sua contribuição aos esforços do governo para reduzir a miséria


Essa idéia de adotar uma cidade surgiu ainda no começo do ano, logo em seguida ao êxito do Congresso Internacional Combatendo a Pobreza - Novas Formas de Solidariedade, organizado pela Conib e pelo Congresso Judaico Latino-Americano, e do qual participaram alguns dos principais membros do governo eleito, como José Graziano e Frei Betto, e altos funcionários de bancos de desenvolvimento e fomento internacionais. É verdade que até se poderia embarcar na esteira do entusiasmo provocado pelos discursos e intenções do presidente, mas não é menos verdade que se preferiu a cautela ao açodamento e o interesse pelos detalhes a uma superioridade vazia de conteúdo.
Queríamos saber e conhecer para não ficar ignorantes da verdade. Nessa linha, supomos que, ao falar em fome, o presidente deve se referir a famintos desnutridos, em situação de pobreza crítica e mais acentuada entre crianças de até 5 anos e suas mães. Por isso um técnico foi enviado à cidade para detalhar carências e avaliar necessidades. Concluído o estudo, as lideranças comunitárias se conscientizaram da importância política dessa empreitada e decidiram escrever e participar da história deste país, levando em conta um princípio judaico: cada ser humano é responsável pelo próximo.
Uma das ações, portanto, será um programa de avaliação nutricional em crianças de até 5 anos de idade e a recuperação nutricional delas. O hospital Albert Einstein, a Associação Brasileira a Hebraica, a Federação Israelita de São Paulo e entidades assistenciais colaboraram com sua experiência e conhecimento no sentido de assumir compromissos, porque o compromisso é sinônimo de vida. Talvez fosse mais cômodo e confortável juntar alguns milhares de reais, solicitar uma boa quantidade de produtos de grandes empresários judeus em seus vários ramos de atividade, marcar uma solenidade, convidar o presidente e ministros, fazer a doação, lavar as mãos e bradar a missão cumprida.
Para nós, muito mais do que simplesmente prover o efêmero e o circunstancial, é fundamental criar condições para um desenvolvimento econômico e social sustentável. É sugerir o que fazer, indicar como fazer e deixar que façam. É colocar ao alcance do homem o que o homem cria para o seu próprio bem e fazê-lo se encharcar de fé e esperança.

Jack Leon Terpins, 54, engenheiro, é presidente da Conib (Confederação Israelita do Brasil) e do Congresso Judaico Latino-Americano.


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