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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cresce a voz do Brasil

JOSÉ MAURICIO BUSTANI

O Brasil alcançou novo patamar em sua trajetória na direção de um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em sua primeira passagem pelo Reino Unido, colheu do primeiro-ministro britânico decisiva manifestação pública em favor da candidatura brasileira. O Brasil conta, assim, com o apoio explícito de três dos cinco membros permanentes do CSNU, órgão que, concebido em 1945, hoje clama por impulsos de renovação. Em fase crítica da história recente, que expõe, com intensidade dramática, os sinais de fracasso da comunidade internacional na luta contra novos e antigos desafios, impõe-se a renovação institucional do arcabouço criado pela Carta de San Francisco.


O Reino Unido, ao apoiar o Brasil, demonstra estar ciente do déficit de representatividade do Conselho de Segurança


A posição britânica em favor da expansão do conselho e do ingresso do Brasil e de outros representantes das regiões em desenvolvimento reflete, a um só tempo, o reconhecimento das deficiências do atual arranjo institucional e a visão de que a ONU, a despeito de limitações e percalços, se não existisse, teria de ser inventada, como declarou Tony Blair à Assembléia do Milênio. Também parece claro ao Reino Unido, assim como ao Brasil, que a idéia de reforma não pode prescindir da superação do anacronismo que hoje caracteriza o principal órgão do sistema onusiano. A guerra contra o Iraque, a despeito de todos os obituários da ONU e do CSNU que se produziram freneticamente, antes serviu para confirmar a relevância do conselho e a urgência de reformá-lo. Como afirmou o ministro Celso Amorim, esse não é um objetivo deste ou daquele país. É uma necessidade do próprio sistema internacional. O Reino Unido dá sinais auspiciosos de que tem a correta percepção do desafio.
O apoio britânico tem significado especial não somente à luz do papel crucial que o Reino Unido desempenha agora no cenário internacional, mas também em função do histórico da cooperação multilateral entre os dois países e de nossas relações bilaterais intensas e profícuas. Embora o passado mais recente tenha evidenciado percepções diferenciadas, em particular no tocante à questão iraquiana, as afinidades dão a marca do relacionamento entre os dois países. O primeiro-ministro britânico costuma reiterar a ambição do Reino Unido de atuar como uma força para o bem no mundo. A consecução desse objetivo pressupõe, na visão do Brasil, o fortalecimento do multilateralismo em trajetória de crescente democratização das relações internacionais.
Ao manifestar seu apoio, o Reino Unido endossa essa visão do imperativo de democratização do sistema multilateral. Sinaliza também, em sintonia com os valores e princípios que orientam a diplomacia do presidente Lula, que o Brasil não precisa necessariamente "concordar" para ser aceito e respeitado como ator e interlocutor de relevância.
A superação dos graves problemas que hoje enfrenta a comunidade internacional não se presta a decisões que desconsiderem a complexidade dos fatos, a diversidade de opiniões e as regras multilaterais. Em um mundo cada vez mais complexo, novos desafios à segurança internacional agregam-se a uma agenda anterior, não cumprida, na qual se destacam as próprias causas da insegurança: a fome, a carência de oportunidades, as desigualdades crescentes, as epidemias, como a da Aids, que assolam regiões inteiras do planeta, a percepção de iniquidade de um sistema que hoje exige vontade política e compromisso com a mudança.
Ao drama de conflitos persistentes no Oriente Médio, na Ásia e na África, soma-se o cenário alarmante da ameaça pelas armas de destruição em massa, sejam aquelas de posse dos Estados, sejam aquelas que eventualmente caiam nas mãos de grupos terroristas. A comunidade internacional não pode recuar em seus esforços pelo cumprimento das obrigações de desarmamento e não-proliferação consagradas nos tratados regionais e globais. Nesse contexto, a reforma do Conselho de Segurança, cujos atuais cinco membros permanentes são os que têm, à luz do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, status de potências nucleares, deve ser vista ainda como elemento de injeção de impulsos de revitalização e fortalecimento da ONU como um todo.
Como membro não-permanente pela nona vez, o Brasil voltará a integrar o Conselho de Segurança por mais um biênio, em janeiro de 2004. Consideramos nossa contribuição às deliberações do conselho uma valiosa oportunidade. Buscaremos, como sempre, uma atuação engajada e construtiva. Atuaremos em sintonia com as aspirações que nos mobilizam no plano interno, em defesa de soluções que permitam gerar condições sustentáveis de paz, justiça, segurança e estabilidade no plano internacional.
Os objetivos de atuação em defesa do direito internacional e de respeito e fortalecimento do sistema multilateral, sem os quais corremos o grave risco da anarquia ou da autocracia, darão o norte de nossa atuação no conselho, agora e sempre. Para o Brasil, são motivo de grande preocupação as tendências de favorecimento de soluções "ad hoc" para problemas como a ameaça das armas de destruição em massa, em detrimento de regras e procedimentos legais e legítimos, como consagrados no direito internacional. Precisamos atuar em caráter permanente a fim de contribuir, pela via do diálogo e da negociação, para a discussão de novas perspectivas que favoreçam a concertação democrática entre as nações a partir da ONU.
A idéia da inclusão do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança remonta às discussões de Dumbarton Oaks, em 1944. O resultado das negociações levou a uma configuração com cinco membros permanentes, que hoje salta aos olhos como em total falta de sintonia com as realidades de poder no mundo. O Reino Unido, ao apoiar o Brasil, demonstra estar ciente do déficit de representatividade e legitimidade do conselho, que resulta em reconhecido déficit de eficácia, na contramão dos propósitos para os quais foi concebido o órgão encarregado de zelar pela paz e segurança internacionais.

José Mauricio Bustani é o embaixador do Brasil no Reino Unido.


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