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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Espertos e "gozosos"
Nem tudo num país se resume a
políticas, práticas e instituições.
Também contam os temperamentos,
as formas de consciência, as maneiras
de ser.
Por que nos temos mostrado os brasileiros atraídos, até na escolha de nossos presidentes recentes, por uma espécie de personalidade que, em outras
nações, costuma ser vista com desconfiança e considerada imprópria
para o desempenho de grandes tarefas? O tipo a que me refiro reúne duas
séries de traços.
Em primeiro lugar, é antes de tudo
um sobrevivente. Ambicioso e esperto, aprendeu a subir na vida, manobrando as fraquezas dos outros. Tem
olho de águia para as fontes de facilidades e de oportunidades; como dizem os americanos, sabe qual lado da
torrada está amanteigado. Abstrações
e aspirações não lhe parecem pesar
em comparação com as forças tangíveis do poder, do dinheiro e dos compadrios. Assemelha-se nisso aos malandros que protagonizam os romances europeus picarescos dos séculos 17
e 18. Embora ele se julgue um desiludido, de olhos abertos, tem algo de atávico.
Em segundo lugar, mestre em relações pessoais, prima pelo pseudo-intimismo, insinuando intimidades sem
ter de aturá-las. Desacreditando na
autonomia do espaço público, transporta para ele os modos e as metáforas
da vida de família e dos círculos de
amigos e de cupinchas. Isso empresta
a seus atos calor e brilho paradoxais, já
que a vida familiar e comunitária continua quase sempre a ser o ímã de nosso fascínio e o consolo de nossa tristeza.
As duas séries de características juntam-se no deleite irresistível que esse
anti-herói encontra nos requintes materiais mais vulgares. A natureza desse
personagem é "gozosa".
Pode ter nascido pobre, mal contendo o grito do arrivista diante do botim:
"cheguei". Ou pode ser sofisticado e
cosmopolita, nascido na classe média.
Mesmo nesse caso, porém, parecerá
um "penetra" ao tratar com endinheirados, como se se sentisse inseguro na
festa ou temesse perder a qualquer
momento o condão de agradar os
poucos embromando os muitos.
De onde vem o êxito calamitoso dessa figura em nosso meio? De uma travessia perturbada ou interrompida. A
fórmula tradicional de uma sociedade
como a nossa, forjada na escravidão e
suavizada pela família, era a mistura,
nas mesmas relações sociais, de troca,
prepotência e lealdade -a sentimentalização das trocas desiguais. O Brasil
rejeitou isso. Está sacudido por nova
cultura popular de iniciativa e de auto-ajuda. Mas não conseguiu ainda institucionalizar a democratização das
oportunidades nem consolidar o espírito e a prática republicanos. Nesse
meio-mundo crepuscular e contraditório, esse tipo encontra vez.
Se há muito que nos torna vulneráveis às seduções desse aventureiro falante e charmoso, que tão habilmente
exprime e explora um lado de nossa
situação, também temos recursos
com que enquadrá-lo. Uma bifurcação inibidora tem prevalecido no pensamento brasileiro: registro de forças
estruturais tidas por inexoráveis na vida prática, celebração eufórica ou sentimental de formas de consciência e de
cultura. Nenhum dos dois lados desse
binômio presta. Nenhum dos dois
ajuda a terminar o reinado dos espertos e "gozosos". Para compreender
nossa realidade, precisamos imaginar
as condições de sua transformação.
Para mudar o Brasil, precisamos de
coragem, iluminada por imaginação.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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