São Paulo, terça-feira, 27 de julho de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Espertos e "gozosos"

Nem tudo num país se resume a políticas, práticas e instituições. Também contam os temperamentos, as formas de consciência, as maneiras de ser.
Por que nos temos mostrado os brasileiros atraídos, até na escolha de nossos presidentes recentes, por uma espécie de personalidade que, em outras nações, costuma ser vista com desconfiança e considerada imprópria para o desempenho de grandes tarefas? O tipo a que me refiro reúne duas séries de traços.
Em primeiro lugar, é antes de tudo um sobrevivente. Ambicioso e esperto, aprendeu a subir na vida, manobrando as fraquezas dos outros. Tem olho de águia para as fontes de facilidades e de oportunidades; como dizem os americanos, sabe qual lado da torrada está amanteigado. Abstrações e aspirações não lhe parecem pesar em comparação com as forças tangíveis do poder, do dinheiro e dos compadrios. Assemelha-se nisso aos malandros que protagonizam os romances europeus picarescos dos séculos 17 e 18. Embora ele se julgue um desiludido, de olhos abertos, tem algo de atávico.
Em segundo lugar, mestre em relações pessoais, prima pelo pseudo-intimismo, insinuando intimidades sem ter de aturá-las. Desacreditando na autonomia do espaço público, transporta para ele os modos e as metáforas da vida de família e dos círculos de amigos e de cupinchas. Isso empresta a seus atos calor e brilho paradoxais, já que a vida familiar e comunitária continua quase sempre a ser o ímã de nosso fascínio e o consolo de nossa tristeza.
As duas séries de características juntam-se no deleite irresistível que esse anti-herói encontra nos requintes materiais mais vulgares. A natureza desse personagem é "gozosa".
Pode ter nascido pobre, mal contendo o grito do arrivista diante do botim: "cheguei". Ou pode ser sofisticado e cosmopolita, nascido na classe média. Mesmo nesse caso, porém, parecerá um "penetra" ao tratar com endinheirados, como se se sentisse inseguro na festa ou temesse perder a qualquer momento o condão de agradar os poucos embromando os muitos.
De onde vem o êxito calamitoso dessa figura em nosso meio? De uma travessia perturbada ou interrompida. A fórmula tradicional de uma sociedade como a nossa, forjada na escravidão e suavizada pela família, era a mistura, nas mesmas relações sociais, de troca, prepotência e lealdade -a sentimentalização das trocas desiguais. O Brasil rejeitou isso. Está sacudido por nova cultura popular de iniciativa e de auto-ajuda. Mas não conseguiu ainda institucionalizar a democratização das oportunidades nem consolidar o espírito e a prática republicanos. Nesse meio-mundo crepuscular e contraditório, esse tipo encontra vez.
Se há muito que nos torna vulneráveis às seduções desse aventureiro falante e charmoso, que tão habilmente exprime e explora um lado de nossa situação, também temos recursos com que enquadrá-lo. Uma bifurcação inibidora tem prevalecido no pensamento brasileiro: registro de forças estruturais tidas por inexoráveis na vida prática, celebração eufórica ou sentimental de formas de consciência e de cultura. Nenhum dos dois lados desse binômio presta. Nenhum dos dois ajuda a terminar o reinado dos espertos e "gozosos". Para compreender nossa realidade, precisamos imaginar as condições de sua transformação. Para mudar o Brasil, precisamos de coragem, iluminada por imaginação.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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