São Paulo, quarta-feira, 27 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A comercialização dos serviços educativos

ARTHUR ROQUETE DE MACEDO

Os efeitos do processo de globalização sobre a educação não devem ser minimizados e muito menos ignorados; são irreversíveis e seu potencial de transformação é cada vez maior. Esses efeitos devem ser permanente e cuidadosamente avaliados por todos aqueles que se interessam em preservar a qualidade da educação e os valores socioculturais regionais e nacionais que ela expressa.
Várias ações têm sido perpetradas contra os princípios fundamentais da educação e da autonomia dos povos em nome da universalização do conhecimento e da difusão das novas tecnologias. Exemplo marcante foi a decisão da OMC (Organização Mundial do Comércio) de incluir o ensino superior entre um dos 12 setores de serviço catalogados no Gats (Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços). Essa decisão reacendeu de forma explosiva a discussão. Ensino superior: bem público e direito do cidadão ou mercadoria a ser livremente comercializada?
A Declaração Mundial sobre a Educação Superior no Século 21, aprovada em outubro de 1998 por representantes de 180 países reunidos na Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), em Paris, define claramente a educação superior como um serviço público que deve basear suas orientações de longo prazo em objetivos e necessidades sociais, incluindo o respeito às culturas e a proteção do meio ambiente. Essa orientação é sustentada pelas declarações e planos de ação das conferências regionais sobre o ensino superior realizados em Havana, Dacar, Tóquio, Palermo e Beirute ao longo do ano de 1998.
Na mesma linha de pensamento estão as posições do ex-primeiro ministro francês Lionel Jospin: "Se o ensino superior deve se adaptar ao mercado, eu rejeito a concepção mercantil segundo a qual o mesmo poderá ser determinado pelo mercado". E termina: "Como a maioria dos europeus, sou fiel ao serviço do Estado na garantia de igualdade de oportunidades e no financiamento".
Esta é a melhor corrente de pensamento, mas não a única. A OMC postula, com o apoio de alguns países desenvolvidos, liderados por EUA, Austrália e Nova Zelândia, a comercialização dos serviços educacionais. A argumentação da OMC é que, a partir do momento em que instituições particulares são admitidas como provedoras de ensino, ele se torna um serviço comercial, ao qual se aplicam as regras do Gats.


Sou partidário da coexistência dos sistemas público e privado sob regulamentação e fiscalização do Estado


Ao analisarmos a importância da educação superior no aspecto econômico, entendemos a posição da OMC e dos países exportadores de programas e de tecnologias na área da educação e da capacitação de recursos humanos. O banco norte-americano Merrill Lynch calculou o mercado mundial do conhecimento pela internet em US$ 9,4 bilhões no ano 2000 e estimou que esse valor poderá, em três anos, alcançar a cifra de US$ 55 bilhões. A revista "Exame", em abril do corrente ano, salienta que os negócios diretamente ligados à educação, em nosso meio, movimentam anualmente R$ 90 bilhões.
Outros dados poderiam ser relacionados para mostrar o impacto comercial do setor educacional. Seria desnecessário -o empenho da OMC e de grupos ligados a agências internacionais em colocar a educação como um dos doze setores de serviço incluídos no Gats deixa clara a questão.
Essa linha de atuação não é isenta de riscos; dentre os quais merecem ser destacados: a uniformização do ensino superior, com perda dos enfoques regionais específicos; o enfraquecimento dos laços culturais e a desvinculação às necessidades e aos interesses nacionais; o aumento da possibilidade de difusão dos sistemas de franquias; a decadência das instituições educacionais e de formação de recursos humanos dos países em desenvolvimento; a utilização de recursos públicos para o financiamento de grupos estrangeiros que comercializem o ensino superior; a subordinação dos interesses estratégicos de nações independentes às regras do Gats.
Felizmente, essas ameaças poderão ser evitadas se a reação de associações universitárias importantes e representativas receber o apoio da comunidade acadêmica e científica internacional e dos 180 países que assinaram a Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século 21.
Na verdade, o poder de regulamentar o ensino superior deve permanecer com o Estado, devendo cada país, de forma soberana, delegá-lo total ou parcialmente, quando conveniente, ao setor privado, deixando claro que esta concessão não o descaracteriza de maneira nenhuma como um bem público que deve ser usufruído de forma universal pelos seus cidadãos.
Particularmente, sou partidário da coexistência dos sistemas público e privado sob regulamentação e fiscalização do Estado, devendo a educação superior acompanhar a globalização, mas jamais ser por ela determinada, sob o risco de perda da nossa identidade cultural e do distanciamento das necessidades do país e dos anseios da sociedade brasileira.


Arthur Roquete de Macedo, 59, ex-reitor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e diretor da Cesgranrio-SP, é presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação.


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