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São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Invasões bárbaras

De vez em quando aparece um filme que ultrapassa os limites do cinema, que expressa de maneira condensada toda uma situação histórica. Foi o caso, por exemplo, do argentino "O Filho da Noiva" (Juan José Campanella, 2001), síntese da crise sem precedentes que assolou o país vizinho. É o caso, também, de "As Invasões Bárbaras" (2003), do canadense Denys Arcand.
Os dois filmes compartilham, aliás, a mesma estratégia: focalizar com extrema delicadeza uma situação familiar pungente enquanto forças cósmicas operam no pano de fundo histórico, como se fossem mero cenário da narrativa. No caso do canadense, elas são as "invasões bárbaras", cujo símbolo máximo é a cena do avião perfurando uma das torres gêmeas.
Diante de um pai desenganado pela medicina, um filho tido por frio e pragmático, jovem empresário do mercado financeiro, move mundos para dar ao doente a única coisa que está a seu alcance prover, o conforto de uma morte serena. Convoca os antigos amigos e as ex-amantes do pai e corrompe o hospital inteiro para cercá-lo de cuidados.
Mundos opostos, pois o pai é um professor universitário, socialista e "bon vivant", que repudia com sarcasmo o "puritanismo anglo-saxão" do filho capitalista (estamos no Canadá francês). Numa cena memorável, este procura heroína (melhor do que morfina, diz um médico), como homem de mercado que é, começando por tentar comprá-la na polícia.
Deixemos por conta das opções ideológicas de Denys Arcand o fato de que no filme o hospital público seja uma pocilga, os amigos do pai socialista sejam "pervertidos degenerados" e que o amor pelo capitalista sugira fumaças de redenção no futuro da garota viciada em heroína, fornecedora do pai doente. Ele reproduz o espírito da época.
A sequência foi mais ou menos essa: depois de serem consideradas controvertidas, as idéias socialistas passaram a ser erradas, depois, imorais (quando caíram as ditaduras do leste), e agora, como no filme de Arcand, elas se tornam algo de patológico, numa estranha ironia em relação ao velho hábito soviético de internar dissidentes em clínicas mentais.
Em termos políticos, é quase como se o bem e o mal trocassem de lugar no espaço de duas décadas. Esse é o dinamismo interno à reconciliação entre pai e filho neste filme belo e triste. Mas existe uma terceira força, ameaçadora, onipresente nas imagens do megatentado nas telas de TV, que acontece ao mesmo tempo que o drama familiar.
"As Invasões Bárbaras" é um filme convencional. Pretende uma continuidade com o outro filme de Arcand, "O Declínio do Império Americano" (1987), que não tem. Resvala a ingenuidade. Mas é uma síntese que capta num só movimento a morte da "velha Europa", a conversão do capitalismo em algo moral e a ameaça dos excluídos da Terra.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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