|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OTAVIO FRIAS FILHO
Invasões bárbaras
De vez em quando aparece um
filme que ultrapassa os limites do
cinema, que expressa de maneira condensada toda uma situação histórica.
Foi o caso, por exemplo, do argentino
"O Filho da Noiva" (Juan José Campanella, 2001), síntese da crise sem precedentes que assolou o país vizinho. É o
caso, também, de "As Invasões Bárbaras" (2003), do canadense Denys Arcand.
Os dois filmes compartilham, aliás, a
mesma estratégia: focalizar com extrema delicadeza uma situação familiar
pungente enquanto forças cósmicas
operam no pano de fundo histórico,
como se fossem mero cenário da narrativa. No caso do canadense, elas são
as "invasões bárbaras", cujo símbolo
máximo é a cena do avião perfurando
uma das torres gêmeas.
Diante de um pai desenganado pela
medicina, um filho tido por frio e
pragmático, jovem empresário do
mercado financeiro, move mundos
para dar ao doente a única coisa que
está a seu alcance prover, o conforto
de uma morte serena. Convoca os antigos amigos e as ex-amantes do pai e
corrompe o hospital inteiro para cercá-lo de cuidados.
Mundos opostos, pois o pai é um
professor universitário, socialista e
"bon vivant", que repudia com sarcasmo o "puritanismo anglo-saxão" do
filho capitalista (estamos no Canadá
francês). Numa cena memorável, este
procura heroína (melhor do que morfina, diz um médico), como homem
de mercado que é, começando por
tentar comprá-la na polícia.
Deixemos por conta das opções
ideológicas de Denys Arcand o fato de
que no filme o hospital público seja
uma pocilga, os amigos do pai socialista sejam "pervertidos degenerados"
e que o amor pelo capitalista sugira fumaças de redenção no futuro da garota viciada em heroína, fornecedora do
pai doente. Ele reproduz o espírito da
época.
A sequência foi mais ou menos essa:
depois de serem consideradas controvertidas, as idéias socialistas passaram
a ser erradas, depois, imorais (quando
caíram as ditaduras do leste), e agora,
como no filme de Arcand, elas se tornam algo de patológico, numa estranha ironia em relação ao velho hábito
soviético de internar dissidentes em
clínicas mentais.
Em termos políticos, é quase como
se o bem e o mal trocassem de lugar
no espaço de duas décadas. Esse é o dinamismo interno à reconciliação entre pai e filho neste filme belo e triste.
Mas existe uma terceira força, ameaçadora, onipresente nas imagens do
megatentado nas telas de TV, que
acontece ao mesmo tempo que o drama familiar.
"As Invasões Bárbaras" é um filme
convencional. Pretende uma continuidade com o outro filme de Arcand,
"O Declínio do Império Americano"
(1987), que não tem. Resvala a ingenuidade. Mas é uma síntese que capta
num só movimento a morte da "velha
Europa", a conversão do capitalismo
em algo moral e a ameaça dos excluídos da Terra.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Sergio Torres: Encontro de cadáver? Próximo Texto: Frases
Índice
|