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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Dimensões paralelas
É PRECISO estômago para almoçar no centro velho de São
Paulo. Não que faltem restaurantes honestos por ali. Como por
toda parte, os "quilos" avançam,
mas alguns são razoáveis e, se o cidadão se dispuser a caminhar, poderá achar de tudo um pouco, inclusive as casas tradicionais que
permanecem na área, como o La
Casserole, onde às vezes vou em
busca de um bom prato e do ambiente afrancesado.
O problema de almoçar na São
Paulo "downtown" não está à mesa, mas no espaço público.
Ando com mais freqüência do
que gostaria pelos arredores da sede da Folha, no bairro dos Campos
Elíseos, pertinho da avenida São
João -e também da cracolândia.
Bem, na verdade, não deveríamos mais falar em cracolândia, já
que o fim do deprimente aglomerado de viciados foi anunciado pela
gestão Serra-Kassab, sob o comando operacional do "xerifão" Andrea Matarazzo. Sim, "xerifão", como escreveu a revista "Veja São
Paulo", no raiar de 2008, em excitada reportagem de capa sobre o
novo modelo de autoridade.
Não era um "xerifão" qualquer,
mas um legítimo representante da
elite com as mãos na massa. Em
seus punhos "reluziam abotoaduras" com o monograma da família.
Como numa metrópole de HQ, vistoriava canteiros, mandava retirar
faixas e derrubar barracos. "Pode,
às vezes, parecer demagogia, mas o
que ele faz em geral é bom para a
vida da cidade", explicava a revista,
dirimindo dúvidas.
Fiquei muito impressionado.
Mas o que continuo vendo pela São
João e redondezas são crianças
imundas consumindo drogas ou
desmaiadas pelas calçadas. Crianças de 10, 12 anos, feições deformadas, embrulhadas em trapos. Esforço-me para não perder o apetite. É preciso concentração. Se bem
que no Brasil já desenvolvemos
tecnologia de ponta para conviver
com a extrema desigualdade. Somos os campeões mundiais nesse
esporte radical. Aqui, é como se a
sociedade não se dividisse em classes, mas em dimensões paralelas.
Assim, é possível caminhar pela
calçada da avenida São João e atravessar pessoas de outra dimensão,
que não a sua, como se atravessam
paredes em seriados sci-fi.
Discute-se por esses dias o efeito
"embelezador" que a publicidade
teria exercido na cidade antes da
Lei Cidade Limpa. Estou entre os
que consideravam o caos publicitário horrendo. Se a "limpeza" desnudou aspectos feiosos, também
revelou situações bonitas onde só
havia estresse visual.
Não se pode desconhecer que o
"xerifão" foi um ativo defensor da
Cidade Limpa, mas, no caso da cracolândia, tem-se a impressão de
que a prefeitura fez o contrário:
procurou erguer outdoors propagandísticos na inglória tentativa de
tapar o sol com a peneira.
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES é editor da
Ilustrada.
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