São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 2008

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Dimensões paralelas

É PRECISO estômago para almoçar no centro velho de São Paulo. Não que faltem restaurantes honestos por ali. Como por toda parte, os "quilos" avançam, mas alguns são razoáveis e, se o cidadão se dispuser a caminhar, poderá achar de tudo um pouco, inclusive as casas tradicionais que permanecem na área, como o La Casserole, onde às vezes vou em busca de um bom prato e do ambiente afrancesado.
O problema de almoçar na São Paulo "downtown" não está à mesa, mas no espaço público.
Ando com mais freqüência do que gostaria pelos arredores da sede da Folha, no bairro dos Campos Elíseos, pertinho da avenida São João -e também da cracolândia.
Bem, na verdade, não deveríamos mais falar em cracolândia, já que o fim do deprimente aglomerado de viciados foi anunciado pela gestão Serra-Kassab, sob o comando operacional do "xerifão" Andrea Matarazzo. Sim, "xerifão", como escreveu a revista "Veja São Paulo", no raiar de 2008, em excitada reportagem de capa sobre o novo modelo de autoridade.
Não era um "xerifão" qualquer, mas um legítimo representante da elite com as mãos na massa. Em seus punhos "reluziam abotoaduras" com o monograma da família.
Como numa metrópole de HQ, vistoriava canteiros, mandava retirar faixas e derrubar barracos. "Pode, às vezes, parecer demagogia, mas o que ele faz em geral é bom para a vida da cidade", explicava a revista, dirimindo dúvidas. Fiquei muito impressionado.
Mas o que continuo vendo pela São João e redondezas são crianças imundas consumindo drogas ou desmaiadas pelas calçadas. Crianças de 10, 12 anos, feições deformadas, embrulhadas em trapos. Esforço-me para não perder o apetite. É preciso concentração. Se bem que no Brasil já desenvolvemos tecnologia de ponta para conviver com a extrema desigualdade. Somos os campeões mundiais nesse esporte radical. Aqui, é como se a sociedade não se dividisse em classes, mas em dimensões paralelas.
Assim, é possível caminhar pela calçada da avenida São João e atravessar pessoas de outra dimensão, que não a sua, como se atravessam paredes em seriados sci-fi.
Discute-se por esses dias o efeito "embelezador" que a publicidade teria exercido na cidade antes da Lei Cidade Limpa. Estou entre os que consideravam o caos publicitário horrendo. Se a "limpeza" desnudou aspectos feiosos, também revelou situações bonitas onde só havia estresse visual.
Não se pode desconhecer que o "xerifão" foi um ativo defensor da Cidade Limpa, mas, no caso da cracolândia, tem-se a impressão de que a prefeitura fez o contrário: procurou erguer outdoors propagandísticos na inglória tentativa de tapar o sol com a peneira.


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES é editor da Ilustrada.


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