São Paulo, quarta-feira, 28 de abril de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Quem fomenta a desordem?
FÁBIO KONDER COMPARATO
A tudo isso (e a muitas outras normas constitucionais que, citadas, encheriam toda esta página) o presidente da República e seu ministro da Fazenda provavelmente responderão, instruídos (quem sabe?) por algum candidato a ministro do Supremo Tribunal Federal, que o respeito aos direitos fundamentais de caráter social está submetido ao princípio da "reserva do possível". Ora, como a dívida pública corresponde a mais da metade do PIB anual e o pagamento de juros desse saldo devedor consome cerca de 10% do que anualmente se produz no país, não causou surpresa verificar que o montante dos gastos sociais do governo federal, em 2003, equivaleu a menos da metade das quantias efetivamente pagas no serviço da dívida pública. Todos sabemos que, num famoso documento de campanha, o candidato Lula prometeu, se fosse eleito, respeitar integralmente os acordos e contratos firmados pelo seu predecessor no Palácio do Planalto. A lição do episódio é clara: para o atual governo, o pagamento da escorchante dívida pública passa à frente do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. Sucede que uma parte substancial dessa dívida tem origem externa. Se abrirmos o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, encontraremos em seu art. 26 a seguinte determinação: "No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro". Acrescenta esse artigo que, "apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de 60 dias, a ação cabível". Ficará o leitor, porventura, surpreso se souber que, até hoje, passados mais de 14 anos, ainda não foi instalada no Congresso Nacional essa comissão mista de inquérito sobre a dívida externa? Bem sei o que responderão os governantes, pressionados por habituais defensores da ordem pública: nada disso justifica o "abril vermelho" do MST. Sem dúvida, a Constituição torna "insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária a propriedade produtiva" (art. 185, inciso 2). Mas ela também precisa, no artigo seguinte, que a função social da propriedade rural só se considera cumprida quando ela atende, simultaneamente, aos seguintes critérios: "1) aproveitamento racional e adequado; 2) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; 3) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; 4) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores". Pergunto: quem viola a Constituição, os sucessivos governos que não cumprem o seu dever de expropriar os imóveis de exploração anti-social, ou os militantes do MST que os ocupam para exigir respeito ao seu direito ao trabalho? Fábio Konder Comparato, 67, advogado, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Ruy Altenfelder: A cidadania traída Índice |
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