São Paulo, segunda-feira, 28 de julho de 2008

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MARINA SILVA

O improvável e o imprevisível

O SENTIDO da política é a liberdade, disse a filósofa alemã Hannah Arendt, numa época de guerras mundiais e de ápice do autoritarismo. Mudaram os tempos, caíram muros, estátuas, reputações, mitos, embaralharam-se muitas vezes as cartas, mas política e liberdade, juntas, continuam sendo o sopro vital para as sociedades humanas.
A política, sinônimo da ação dos cidadãos no espaço público e do exercício representativo do poder de Estado, acabou identificada apenas como o território dos partidos políticos. No Brasil, isso também acontece. Um grande número de pessoas não se reconhece mais como ser político e não reconhece nada de bom na política partidária.
E os partidos, na maioria das vezes, agem como se não houvesse vida política ativa fora deles.
Penso até que exista uma espécie de memória do período autoritário impressa nesse modo de agir. Lutar contra a ditadura implicava estar sob a cobertura de um grupo organizado e submeter-se às suas regras, na clandestinidade ou no partido de oposição legal, que virou abrigo de combatentes de um amplo espectro ideológico.
Restabelecida a democracia, persistir no que era contingência histórica pode enevoar a visão. Os partidos políticos ainda se vêem como núcleos hegemonizadores da energia política da sociedade. Mas não são mais. São apenas os donos das chaves de acesso a parte do poder de Estado, por força de dispositivo constitucional que condiciona a elegibilidade à necessária filiação partidária.
A verdade é que os cidadãos e cidadãs estão criando uma política livre, viva, na academia, nos movimentos culturais, no consumo consciente, na internet, nas empresas, nas ONGs, nas igrejas, contribuindo para a transformação social da maneira como gostam e se dispõem. A via partidária é apenas uma das opções nesse todo.
O grande desafio da democracia é criar espaços múltiplos de participação política, nos quais os partidos sejam parceiros e não guias. As pessoas se recusam à diluição das diferenças e à fusão dos sonhos.
Querem co-autoria em lugar da apropriação do fazer político. Age-se hoje não mais em nome das fórmulas partidárias restritivas, mas por valores permeáveis. Busca-se compartilhamento e não hegemonia. Não se aceita dedicar vidas a projetos fechados.
Hannah Arendt também disse que os homens, "enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não". É o que a sociedade brasileira está fazendo. E os partidos ainda não se tocaram.
Está aí um tema crucial da política brasileira. Voltarei a ele.

contatomarinasilva@uol.com.br


MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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