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São Paulo, quinta-feira, 28 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um legado que transforma o mundo

MILÚ VILLELA

Do luto à luta pelos direitos humanos. Como cidadã brasileira, não poderia deixar de me pronunciar sobre o ultrajante atentado contra a ONU, em Bagdá, que interrompeu o incansável trabalho humanitário de Sérgio Vieira de Mello. Foi um golpe truculento nas nossas esperanças de viver num mundo orquestrado pela paz entre os povos. Mas é preciso vencer o luto e continuar a luta humanista de Sérgio Vieira de Mello.
Nascido no Rio de Janeiro e cidadão do mundo desde muito pequeno, Sérgio dedicou os últimos 33 anos de sua vida ao serviço à ONU, sempre em missões muito difíceis. Vieira de Mello jamais foi um diplomata de gabinete, cercado de mordomias em países pacíficos e desenvolvidos. Seu idealismo em busca da paz mundial sempre esteve voltado para a dura realidade dos países do Terceiro Mundo, onde guerras civis e o desrespeito aos direitos humanos, infelizmente, fazem parte do dia-a-dia.
Vieira de Mello nunca teve medo de enfrentar desafios.
Jamais evitou situações difíceis, porque sempre teve muita fé em Deus. Com uma certa irreverência carioca, costumava dizer que Deus é brasileiro. E levou a nossa mais sincera sabedoria brasileira para o resto do mundo. Não aquela imagem estereotipada e carnavalesca de um Brasil folclórico, mas a nossa clarividência em lidar com a diversidade cultural, tantas etnias, o nosso jeito de resolver problemas sem guerras ou terrorismo. Vieira de Mello é um exemplo lapidar da sapiência do nosso povo sincrético e sempre tão radiante.
Ele foi mais que fundamental no processo de emancipação do Timor Leste como nação soberana, após 20 anos de truculenta ditadura indonésia, que sempre chocou o mundo.
O extraordinário diplomata da ONU, na definição de tantos líderes mundiais, combinava rigor e simpatia, erudição e pés no chão, clareza e coragem, generosidade e humanismo. Irradiava um dom de persuasão que poucas pessoas têm. Vieira de Mello tinha charme, elegância e uma vontade imensa de viver num mundo mais justo, sem guerras, sem conflitos sangrentos, sem refugiados e oprimidos. Sua meta, missão e sacerdócio: os direitos humanos. Mas o seu legado não pode nem vai parar.



Para o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, Vieira de Mello era o diplomata mais brilhante de toda a organização

A trajetória de Vieira de Mello é tão rica de idealismo e de paixão pela vida que se tornou um patrimônio de toda a humanidade, como tantos países reconhecem. Um de seus maiores talentos era o respeito à cultura dos povos nos países onde era convidado a trabalhar. Uma sabedoria genuinamente brasileira, sublinhe-se. Ele acreditava na soberania de cada povo e jamais teve medo de dizer isso nos encontros de cúpula da ONU. Em Nova York, cobrou dos EUA e da Inglaterra medidas mais claras para devolver a soberania de nação ao Iraque. Teve imensa empatia pelo sofrimento do povo iraquiano e chegou a afirmar que também não gostaria de ver tanques de outros países desfilando pelos calçadões de Copacabana.
A preocupação e a delicadeza de Vieira de Mello com a diversidade cultural dos países sempre foi tão grande que, no Timor Leste, apenas para citar um exemplo, fez questão de aprender o tétum, a língua local, e foi visitar cada uma das províncias que compõem até hoje essa nação recém-criada, com o intuito de tranquilizar a população e esclarecer as suas intenções mais sinceras.
Vieira de Mello foi um herói do humanismo. Um mártir dos direitos humanos. Um líder que ajudou a semear a paz mundial com suas campanhas humanitárias. O planeta ficou menos exuberante sem a sua elegância apaixonada, a sua clarividência sempre tão radiante, o seu modo simples e informal de ser, não distinguindo reis, rainhas, presidentes e líderes mundiais de refugiados, banidos, excluídos do mundo civilizado.
Para o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, Vieira de Mello era o diplomata mais brilhante de toda a organização. Um brasileiro que honrou o seu país no exterior, ajudando a imprimir garra e profissionalismo na imagem do Brasil no resto do mundo. Precisamos agora resgatar o sorriso iluminado, o calor humano de Sérgio e lutar, sempre em paz, pelos direitos humanos no nosso bairro, em cada esquina da nossa cidade, no nosso Estado, no nosso país e no nosso planeta.
Um pequeno gesto pode mudar o mundo, pode alterar o ciclo da história. Este é um dos principais ensinamentos de Sérgio Vieira de Mello. Seu legado tem de continuar nas ações solidárias de todos nós.

Milú Villela, 56, empresária, é presidente do Faça Parte-Instituto Brasil Voluntário, do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) e do Instituto Itaú Cultural.


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