São Paulo, sexta-feira, 28 de agosto de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A punição aos torturadores

CEZAR BRITTO


Por que a defesa insensata dos torturadores, por que vinculá-los à Lei da Anistia, que é um pacto político, e não criminal?


A POLÊMICA em torno da exclusão dos torturadores dos benefícios da Lei da Anistia embute um equívoco: o de que se estaria propondo a revisão daquela lei para excluí-los. Não é assim. O que se afirma -e é o teor da arguição de descumprimento de preceito fundamental, que a OAB encaminhou ano passado ao Supremo Tribunal Federal, que ainda não a julgou- é que a Lei da Anistia jamais os incluiu.
A lei tratou de crimes políticos e conexos -isto é, decorrentes de um combate político.
A tortura e/ou o assassinato de prisioneiros indefesos, depois de consumada a rendição, configuram crime contra a humanidade -hediondo e imprescritível, segundo a Constituição-, sem conteúdo político. Cabe ao Estado zelar pela integridade física dos que mantém sob sua guarda, não importa o delito cometido.
Era assim, juridicamente, antes e depois do advento da Constituição de 1988. Não faz sentido, pois, beneficiar com a anistia política os que cometeram crimes comuns.
Não se trata de fazer leis posteriores retroagirem para prejudicar. A Lei da Anistia não faz menção a esses casos, que se excluem da luta política que se travou -e se deram à margem dela. A lei abrange apenas os lados que combateram. O torturador não é um combatente: é um criminoso.
O que se pede hoje, portanto, não é a revisão ou a reforma da Lei da Anistia, mas o entendimento de que dela se beneficiaram equivocadamente personagens aos quais ela não se referia. No caso, os agentes do Estado que torturaram, promoveram a tortura ou praticaram homicídio fora do campo de combate político.
Essa a ação que a OAB patrocina no STF, tendo a seu lado os ministros da Justiça, Tarso Genro, e o dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, além de diversas organizações da sociedade civil brasileira.
O próprio regime militar jamais admitiu formalmente a prática da tortura. Considerou-a ação marginal, de cuja responsabilidade até hoje seus remanescentes buscam se eximir.
Sendo assim, por que a defesa insensata dos torturadores, por que vinculá-los à Lei da Anistia, que é um pacto político -e não criminal?
Se os que torturaram o fizeram por conta própria, à revelia dos comandos institucionais, por que o temor de que sejam responsabilizados moral e penalmente? Tal resistência faz supor o contrário do que sustentam essas lideranças remanescentes. Faz supor que havia algum vínculo formal.
As instituições militares pertencem ao país, e não a um grupo político. Não podem, portanto, assumir como seus argumentos facciosos.
Desde a redemocratização, têm sido exemplares no cumprimento de seus deveres, alheias aos embates e ao varejo do jogo político-partidário. Daí a improcedência de apontá-las, em seu conjunto, como obstáculo ao restabelecimento da verdade histórica.
Não podem ser confundidas (nem se confundir) com sentimentos e interesses de alguns de seus setores, claramente minoritários e reacionários. E só têm a ganhar com o esclarecimento cabal daquele sórdido período, virando de vez uma das páginas mais obscuras da história do Brasil.
Enquanto isso não ocorrer, o tema se manterá implacável, a reclamar esclarecimento e reparação judicial, a suscitar dúvidas e suspeitas, que atingem o conjunto das instituições armadas -o que não é justo nem adequado para o país.
Por isso também, antes dessa ação, a OAB já havia ajuizado outra, no mesmo STF, para que os arquivos da ditadura não permaneçam secretos, e outra ainda para apurar denúncias de que esses arquivos estavam sendo queimados e destruídos.
Não podemos continuar a ser a única nação sul-americana vitimada por ditadura militar na segunda metade do século passado a não punir os torturadores e a não conhecer os detalhes de sua própria história. A Argentina chegou a encarcerar ex-presidentes da República sem que isso abalasse a democracia.
O Chile, ao não fazê-lo, viu-se exposto ao vexame de uma providência externa, com a prisão, por crime contra a humanidade, em Londres, do ex-ditador Augusto Pinochet, a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón, aceito pelo juiz inglês Nicholas Evans.
Tem agora o STF a oportunidade de fazer com que a história brasileira seja também passada a limpo, para que o país possa, enfim, conhecer o pesadelo que viveu, de modo a não mais repeti-lo. Confiamos na sensibilidade e senso do dever do Poder Judiciário.
E sabemos que esse é o desejo dos homens de bem deste país.
O que se pede não é revanchismo, senão justiça, em seu sentido moral mais amplo. Tortura é crime de lesa-humanidade. Como tal, não pode constar de combates políticos, por mais extremados que sejam.


CEZAR BRITTO , 47, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).


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