São Paulo, Terça-feira, 28 de Setembro de 1999
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Dostoiévski e o mal

ARIANO SUASSUNA

Como acontece também com o feio, o mal é uma das faces da desordem do mundo e da vida. Ambos são privações, são chagas do ser. Isto não importa em minimizar a importância, a poderosa presença do mal e do feio no universo da realidade e, consequentemente, no da arte. As pessoas que julgam antiquada qualquer referência à moral, normalmente se envergonham de usar os critérios de bem e mal em qualquer julgamento, no estético em particular. Na minha época de juventude passei, como todo mundo, por uma fase em que julguei ter me desvencilhado de Deus e dos conceitos de bem e mal. Até o dia em que, lendo Dostoiévski, encontrei uma frase de Ivan Karamazov, que dizia: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Descobri, na mesma hora, que as normas morais ou tinham um fundamento divino, absoluto, ou não tinham qualquer validade, porque ficariam dependendo das opiniões e paixões de cada um.
Entretanto, como tudo o que o personagem dostoievskiano dizia, a frase de Ivan não continha nem uma afirmação nem uma negação: lançava somente uma dúvida; uma ambígua dúvida da qual Sartre viria a fugir, afirmando: "Deus não existe, e, portanto, tudo é permitido". Eu, porém, apesar da minha extrema juventude, tirei da frase de Ivan a consequência contrária: "Vejo que nem tudo é permitido; então, Deus existe". E, daí por diante, procurei ajustar minha vida e minha arte pela convicção a que chegara.
É por isso que sempre considerei irresponsáveis e mal formulados tanto o princípio amoral estabelecido por Sartre quanto o lema leviano e tolo que os tropicalistas herdaram do movimento parisiense de 68: "É proibido proibir". E certa vez, em debate realizado no Recife, indaguei, de um seguidor do lema, em que se fundamentava tal "proibição de proibir". Ele respondeu que era "numa ética libertária do prazer".
Aí, coloquei, para ele, a seguinte hipótese: "Digamos, então, que um sujeito saia por aí atirando em travestis e homossexuais, como tem acontecido. Se ele alegar que age assim por sentir prazer na prática de tal crime, deve lhe ser permitido continuar, para não ferir a norma de que é proibido proibir? Ou é melhor chegar à conclusão de que, pelo contrário, existem casos em que é permitido, e até obrigatório, proibir?"
E, como não obtive resposta satisfatória, cheguei mais uma vez à conclusão de que Hegel tinha razão ao considerar a arte, a religião e a filosofia como etapas no caminho do ser humano em direção a Deus, fundamento de qualquer norma moral que, por não depender do arbítrio individual, não se veja obrigada a considerar legítima até a realidade monstruosa do crime.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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