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São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Porcas explícitas e ornitorrincos ocultos

FÁBIO WANDERLEY REIS

A renitente desigualdade brasileira, apesar do intenso crescimento do país no século 20, mostra o erro de pretender, como alguns dizem que seria o caso do governo FHC, que política social seja questão de política econômica. Mas, se queremos melhorar socialmente, não se pode escapar à necessidade de boa política econômica, em vez da aposta no mero assistencialismo. Como obtê-la? É banal reconhecer que ela deverá se orientar pelo diagnóstico acurado e realista das circunstâncias em que se executa. Mas é aí que a porca torce o rabo nas novas condições mundiais.
O ineditismo dessas condições não só cria grandes embaraços para a avaliação segura mesmo no plano da dinâmica econômica como tal, dadas a fluidez e as crises variadas. Ele torna, além disso, especialmente difícil responder com alguma segurança e clareza à indagação sobre como acoplar de maneira benigna o econômico e o social. Afinal, se estes são tempos de derrocada do socialismo, são também tempos de comprometimento até da social-democracia em que a prosperidade dos países capitalistas avançados se aliou, após a Segunda Guerra Mundial, com bem-sucedidas políticas de incorporação social. Assim, com toda a nova retórica "social" de instituições como o FMI e o Banco Mundial e as incontornáveis confusões da suposta novidade de uma "Terceira Via" à maneira de Anthony Giddens e Tony Blair, o que temos é a perplexidade geral. E não admira que mesmo um governo FHC, não obstante as condições comparativamente favoráveis em que se abriu e as qualidades intelectuais de seu chefe, tenha soçobrado, em ampla medida (apesar do êxito da estabilização e do sucesso relativo, ironicamente, de certas iniciativas na área social), em meio a apostas otimistas e autocomplacentes quanto às condições com que poderia contar no plano internacional.
Que dizer do governo Lula? Certamente não há por que acreditar que Lula e o PT, forçados a revisões bastante bruscas, estejam menos perplexos neste mundo novo, ou que conheçam o truque ou a fórmula que falta a todos. Sua perplexidade transparece, aliás, em avaliações honestas e torturadas que se fazem dentro do próprio partido, publicadas, por exemplo, no boletim "Periscópio". Por outro lado, no momento da posse, como disse Lula, o navio da economia brasileira já se havia chocado com o iceberg, e estava nitidamente à vista a crise de proporções possivelmente catastróficas cuja ameaça havia sido brandida pelos adversários durante a campanha eleitoral. Menos mal que o governo tenha evitado apostas e tratado de jogar seguro. À parte as fantasias socialistas e as tolices que pretendem ver, nas medidas que possibilitaram os atuais indicadores econômico-financeiros favoráveis e nas reformas agora postas em marcha, mera capitulação desnecessária a uma lógica férrea que nos reduziria as opções, é inútil querer tapar o sol com a peneira: no mundo real que temos diante de nós, a margem de manobra do governo (e dos agentes econômicos nacionais dos quais cabe realisticamente esperar, com todas as reservas que se queira ter, papel crucial na eventual inflexão positiva e sustentada do processo de desenvolvimento) é patentemente maior agora do que ao começar 2003.


Não há por que acreditar que Lula e o PT, forçados a revisões bastante bruscas, estejam menos perplexos neste mundo novo
As tolices, de fato, têm sido muitas. É natural que a esquerda do partido se veja frustrada diante da nova cena mundial com que depara e cujas feições adversas se intensificaram justamente quando o acesso ao poder se tornava cada vez mais uma possibilidade real. Mas são lamentáveis a pressa e a arrogância (esta última mal disfarçada no desfrutável tom paternal de que se vale Fábio Comparato ao criticar o presidente da República em artigo recente na Folha -pág. A3, 8/12) com que intelectuais de quem se esperaria rigor analítico orientado pela atenção aos fatos se "mangabeirizam", reproduzindo em graus diversos o modelo em que Roberto Mangabeira Unger reúne de modo peculiar a incontestável inteligência ao evidente déficit de lucidez. Acrescente-se que, sem embargo do vigor e do metaforismo ocasionalmente "brilhante" das críticas provenientes dos intelectuais de esquerda, é inútil procurar nelas respostas claras às difíceis indagações em torno das quais se dá a perplexidade acima mencionada. E, se há nobre reafirmação de convicções, embora talvez ingênua, há também volubilidades suspeitas.
Tal como se desenrola, o governo Lula (que, aos olhos de muita gente, não devia sequer ter chegado a existir) já nos trouxe, quando nada, a perspectiva de efetiva consolidação institucional da democracia brasileira, com o importante experimento que representa e a conciliação que vai aprendendo a fazer, como na social-democracia, dos princípios com o esforço de realismo e pragmatismo (cabe notar, a propósito, o bom sinal de que emudeceram as denúncias da ameaça de "totalitarismo".) Há, além disso, neste país de tradição aristocrática e elitista, o significado simbólico, potencialmente de grande importância, da elevação da figura de um Lula à Presidência da República, cuja minimização pode ser vista como a contrapartida, à direita, das tolices da esquerda. Tomara que, com os erros fatais e a eventual superação de sectarismos e inexperiências, o governo atual venha também a ter a chance de avançar rumo à social-democracia efetiva e ao menos a deflagrar o processo de longo prazo que será necessário para talvez chegarmos a um Brasil que supere o peso da herança social negativa e seja realmente igualitário e justo. O qual, cumpre reconhecer, não se pode enxergar no futuro que a vista alcança, por melhores que as políticas econômico-sociais venham a ser.


Fábio Wanderley Reis, 66, cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA), é professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.


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