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TENDÊNCIAS/DEBATES
Réquiem para um jardim
RUBEM ALVES
Ah! Meu jardim, jardim com que
sonhei, minhas netas voando nos
balanços, o barulho das fontes misturado ao canto dos pássaros, jardim sonhado pelos poetas e profetas... O que foi
que lhe fizeram? Seus muros estão derrubados. Por todas as partes se ouve o
rosnar dos lobos e das hienas. E não
mais se ouve os risos das crianças.
Os balanços estão abandonados. Os
namorados já não passeiam de mãos
dadas pelas praças. E os adultos, por
medo, se transformaram em toupeiras,
refugiaram-se em buracos fortificados a
que deram o nome de condomínios,
inutilmente...
Jardim é coisa frágil. Não existe naturalmente. A natureza, em si, é bruta e insensível. São os sonhos e o trabalho dos
homens que a transformam em jardim
e a tornam bela e amiga.
Essa é a razão de os jardins serem cercados por muros. Os muros separam a
vida da morte, a beleza do horrendo. Do
lado de fora ficam as feras, os salteadores e os criminosos. Eles não amam os
jardins. O que desejam é saquear os jardins. São emissários do mundo das trevas. Por isso não são humanos. Porque a
marca dos seres humanos é o amor aos
jardins. Foi assim que Deus nos criou,
para que fôssemos jardineiros. Eles têm
a aparência de humanos, mas não são.
Ser humano é amar os jardins. Por isso
eles não têm aquilo a que se deu o nome
de "direitos humanos". Os "direitos humanos" foram criados para proteger a
vida frágil que vive nos jardins: "Bem-aventurados os mansos..." Por isso, porque eles não são humanos, os direitos
humanos não podem ser invocados para proteger os saqueadores dos jardins.
Para os que não entendem a linguagem da poesia, eu explico. O jardim é
uma metáfora da sociedade: é a sua
grande utopia, a estrela inatingível que
indica a direção. O Estado é a instituição
criada pelos jardineiros para proteger o
jardim. Sua função não é plantar o jardim. Sua função é criar um espaço seguro para que os cidadãos-jardineiros
possam plantar o jardim. Os jardineiros
têm uma missão de amor. Por isso são
fracos. Mas o Estado tem uma missão
de força. Por isso ele tem de ser forte. É
preciso ser forte para deter a morte.
O Estado constrói os muros. Os muros são as leis que dizem "não" à morte.
Mas as leis, sozinhas, são fracas. É fácil
pular o muro. Por isso o Estado cria
"guardas do jardim", cuja missão é dar
força às leis. Os jardineiros usam pás e
enxadas, instrumentos de vida. Os
"guardas do jardim" carregam armas,
instrumentos de morte. Por vezes é preciso matar para proteger a vida.
A marca do Estado é a espada que ele
tem nas mãos. Se, por acaso, o Estado se
mostrar incapaz de usar sua espada para a proteção do jardim, ele perde a sua
legitimidade. Um Estado incapaz de punir os criminosos deixou de ser Estado.
Quando o Estado deixa de existir, o medo e a morte tomam conta do jardim.
Os saqueadores derrubam
muros, invadem o
jardim, roubam,
intimidam, sequestram,
assassinam
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Os guardas do jardim são de dois tipos: os guardas que vigiam e punem os
inimigos de dentro e os guardas que vigiam e punem os inimigos de fora: a polícia e as Forças Armadas.
Houve um tempo em que os guardas
do jardim farejaram no ar que o nosso
jardim estava sendo ameaçado por forças estranhas. A essas forças eles deram
o nome de subversivos. Os ditos subversivos não eram saqueadores de jardins.
O que eles queriam era substituir o jardim que existia por um outro jardim
que, nos seus sonhos, seria mais justo e
mais bonito. Em outras palavras: desejavam substituir a ordem social existente por uma outra. Daí o nome de "subversivos". O que estava em jogo era a
"segurança nacional". Os guardas do
jardim, tanto os de dentro quanto os de
fora, se organizaram e, de maneira sistemática, científica e implacável, se lançaram à caça dos subversivos onde quer
que se encontrassem nas cidades, nas
florestas, nas montanhas. E a sua ação
foi eficaz. Os ditos subversivos foram liquidados. Isso significa que, havendo
vontade, os guardas do jardim podem
proteger o jardim.
A situação mudou. Agora não é ameaça: é fato. A subversão se realizou. A ordem social não mais existe. A segurança
nacional foi rompida. Os saqueadores
derrubam muros, invadem o jardim,
roubam, intimidam, sequestram, assassinam, ocupam territórios ao seu bel
prazer, fazem tráfico de drogas, comerciam com países do exterior, impunemente. Sem medo, porque sabem que
os guardas nada farão. E sabem que as
prisões não os deterão. Delas saem
quando querem, abertamente, à luz do
dia, sem que o Estado faça uso da espada. A verdade é que o Estado brasileiro
deixou de existir. Sua incompetência
em usar a espada para deter e punir o
crime o comprova.
Pergunto: por que os guardas do jardim foram tão eficientes há 30 anos e
são tão ineficientes agora?
A resposta é simples: não se podiam
fazer bons negócios com os subversivos
de então. A única mercadoria de que
eles dispunham eram suas idéias. Mas
idéias não valem nada. Com elas não se
fazem bons negócios. A perseguição se
resolvia, então, com a sua morte.
A situação agora é diferente. Com os
criminosos há muitos bons negócios a
serem realizados. Negócios que são infinitamente mais lucrativos que o modesto salário de "guarda de jardim"... Por
isso é essencial e mais lucrativo que continuem vivos. Os bons negócios prosperam com a sua vida...
Rubem Alves, 68, educador, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp e autor de,
entre outros, "A Escola com que Sempre Sonhei
sem Imaginar que Pudesse Existir" (Papirus).
www.rubemalves.com.br
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