São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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O controle externo da Justiça

LUIZ ANTONIO GUIMARÃES MARREY


A existência de problemas éticos não constitui monopólio de nenhum Poder ou instituição, como tem sido visto

Quando se pensa em reformar a Justiça brasileira, a primeira idéia que vem à mente é eliminar os fatores que provocam lentidão dos processos e incerteza jurídica.
Justiça lenta gera a impunidade pela demora na aplicação da pena, pelos riscos de perda da prova colhida inclusive com coação e morte de testemunhas e por um sistema de prescrição que parece concebido para deixar uma válvula de escape no ordenamento jurídico. Além disso, a falta de punição em tempo razoável leva ao aumento da descrença nas vantagens do monopólio estatal do uso da força e estimula a prática de novos crimes.
A lentidão da Justiça aumenta os custos da atividade econômica, encarece produtos e serviços e serve de estímulo a empresas pouco éticas, que contam com o retardamento da prestação jurisdicional para lesar fornecedores, clientes e o próprio poder público. A demora também afeta a certeza jurídica tão necessária ao regime democrático em geral, e não somente para garantia dos contratos. Justiça lenta também é útil ao poder público para protelar o pagamento de suas dívidas, recorrendo indefinidamente, valendo-se de uma legislação processual que permite recursos até quase o infinito.
Optou-se, entretanto, pelo início da reforma da Justiça por outra vertente, aquela que diz respeito à ética e transparência, estabelecendo-se órgãos de fiscalização do Judiciário e do Ministério Público, integrados por pessoas indicadas por outros Poderes ou instituições.
Ética e transparência são essenciais a qualquer atividade, especialmente a pública.
Alguns fatos têm sido apontados como justificadores do chamado controle externo do Judiciário e do Ministério Público: nepotismo; o exercício da advocacia por magistrados aposentados perante ex-colegas de turma ou câmara; uma certa sensação de impunidade quanto a erros praticados pelos profissionais da Justiça.
A existência de problemas éticos não constitui monopólio de nenhum Poder ou instituição, como tem sido visto.
A Justiça também deve prestar contas de sua gestão, e por isso o Ministério Público não tem se oposto à idéia de fiscalização externa.
Muito diferente disso é tentar vilanizar a Justiça como um todo e, num maniqueísmo primário, apresentá-la como uma das grandes causadoras dos males do Brasil ou tentar interferir direta ou indiretamente na independência do Poder Judiciário e do Ministério Público. Nesse sentido, não é sem fundamento a preocupação de vastos setores da magistratura quanto ao chamado controle externo.
É evidente a vontade de alguns de interferir na independência de julgamentos da magistratura e na atuação do Ministério Público. Aqui ou acolá, seguindo-se a decisões que desagradam algum segmento, ouve-se a conclusão de que "é por isso que o Judiciário precisa de controle externo". O mesmo se dá quando a atuação do Ministério Público descontenta algum setor poderoso.
Ora, tal conclusão é inadmissível, pois significaria anular a independência das instituições, que não podem e não devem agir para satisfazer governos, partidos ou ideologias, mas para dar fiel cumprimento à Constituição e às leis.
Preocupa na formulação do chamado controle externo a eliminação da garantia da vitaliciedade, ao se estabelecer a possibilidade da perda do cargo sem o devido processo judicial. Quanto a esse tópico, o máximo que se poderia admitir é que o órgão de controle externo determinasse a propositura da devida ação para a perda do cargo.
A federalização do julgamento dos chamados crimes contra os direitos humanos precisa ter pelo menos o seu contorno mais bem definido, estabelecendo-se, como hipóteses da exceção à competência da Justiça local, a demora injustificada no julgamento e a falta de condições de imparcialidade das instituições estaduais, sob pena de se lançar o manto da desconfiança contra milhares de juízes e promotores estaduais que cumprem suas atribuições da mesma forma que os federais.
Aliás, a concepção de que determinados crimes têm que ser julgados pela Justiça da União, pois há tratados nos quais o Brasil se obrigou a reprimi-los, é uma concepção perigosa ao direito de defesa, porquanto significaria que o único resultado capaz de satisfazer as obrigações do Estado brasileiro é a condenação do acusado. Também é preconceituosa a visão de que as instituições federais seriam melhores ou mais ágeis do que as instituições estaduais, muitas das quais, com mais de um século de funcionamento, têm tradição jurídica de qualidade e seriedade.
Em suma, é legítimo o anseio de aperfeiçoar a Justiça em termos de agilidade, modernização e transparência. Tal pretensão, no entanto, não pode servir de pretexto para uma batalha de cunho ideológico na qual as instituições democráticas e republicanas, concebidas como freio ao exercício do poder absoluto, sejam fragilizadas para facilitar o predomínio de visões autoritárias e messiânicas.

Luiz Antonio Guimarães Marrey, 48, é o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo. Exerceu o mesmo cargo de 1996 a 2000 e foi presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça (1997).


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