São Paulo, quarta-feira, 29 de março de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É preciso ousar

SERGIO LEITÃO

Nas últimas semanas, os brasileiros têm se deparado com notícias sobre a realização de uma reunião internacional em Curitiba para a discussão de temas relacionados à proteção da biodiversidade. A oitava reunião da Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica (CDB), denominada COP-8, segue o ritual, estabelecido pela própria convenção, de reunir periodicamente os representantes dos países que ratificaram o documento, com o objetivo de avaliar avanços e definir novas metas para a proteção do meio ambiente e da vida no planeta.


Sempre que a discussão é ventilada, ambientalistas são rotulados com o clichê de cegos opositores do progresso


A CDB é o principal instrumento internacional de proteção da vida nas florestas e nos mares. Seu maior objetivo é proteger e conservar a biodiversidade, promovendo o uso sustentável de seus recursos, além da repartição justa e eqüitativa dos benefícios decorrentes dessa utilização.
A intenção é beneficiar os que, ao longo de gerações, têm sido responsáveis pela manutenção dos ecossistemas fundamentais ao equilíbrio ambiental da Terra, preservando o planeta para as atuais e as futuras gerações.
Sua importância pode ser avaliada pela urgência na adoção de medidas para reverter o quadro de destruição da biodiversidade em todo o mundo, estampado nos noticiários diários sob a forma de queimadas, índices altíssimos de desmatamento, poluição de rios e mares, redução drástica no número de espécies da fauna e da flora, levando à desertificação de solos, alterações climáticas extremadas, como a seca na Amazônia, entre outros efeitos perversos.
Nesse sentido, o Brasil, como anfitrião da COP-8, desempenha papel-chave. Somos um país megadiverso, integrando o seleto grupo dos que possuem 70% de toda a biodiversidade do planeta, incluindo cerca de 50 mil espécies vegetais (20% de todo o acervo mundial), a maior concentração de mamíferos, inúmeras espécies endêmicas de anfíbios etc. Além disso, o país abriga 4,1 milhões dos quase 8 milhões de km2 da Amazônia, a maior floresta tropical e a maior bacia hidrográfica do mundo, ícone da preservação ambiental. O que se faz no Brasil, para o bem ou para o mal, em termos de proteção à biodiversidade, reverbera no planeta.
Embora reconheçamos os méritos da ministra Marina Silva na defesa do meio ambiente, sendo verdadeiros os avanços que ela vem anunciando, é preciso dizer que ainda há muito por fazer.
Em primeiro lugar, em que pese ter lançado um plano de combate ao desmatamento que começa a apresentar resultados, o governo acordou tarde para o problema e dificilmente evitará que o presidente Lula passe para a história como recordista em índices de desmatamento. Além disso, os planos de infra-estrutura do governo federal, que sempre estimularam o desmatamento na Amazônia, continuam a ignorar a necessidade de incorporar uma discussão sobre o seu custo/benefício em face dos potenciais impactos socioambientais.
Diga-se de passagem, toda vez que essa discussão é ventilada, os ambientalistas são rotulados com o clichê de cegos opositores do progresso, expediente desde sempre utilizado para esconder com uma cortina de fumaça polêmicas que precisariam ser enfrentadas por toda a sociedade.
A verdade é que, sem planejamento e equilíbrio, o Brasil não alcançará a liderança no plano internacional em temas afetos à proteção da biodiversidade.
No dia 27/3, o presidente Lula, em seu discurso de abertura da reunião dos ministros do Meio Ambiente que participam da COP-8, destacou as propostas do governo brasileiro sobre a regulamentação do comércio de transgênicos, o controle da utilização das chamadas sementes suicidas e a criação de um regime internacional de acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais -tudo absolutamente pertinente e necessário.
Tais propostas, entretanto, acabaram eclipsadas pelo tom final do pronunciamento presidencial, que assumiu um ar conformista em relação a uma eventual falta de resultados da reunião de Curitiba (PR). Em vez de conclamar os países ricos a adotar medidas efetivas que os comprometam a uma mudança imediata de rumos, o presidente preferiu deixar que nossos fracassos sejam reparados por quem vier depois.
Infelizmente, a Terra não pode mais esperar. A hora de agir pode e deve ser agora, em Curitiba, e onde mais existam fóruns em que o Brasil tenha a chance de exercer a sua liderança com a necessária dose de ousadia para fazer a diferença.

Sergio Leitão, 41, advogado, é diretor de Políticas Públicas do Greenpeace. Foi assessor de assuntos indígenas do ministro da Justiça José Gregori (2000 a 2001) e diretor-executivo do Instituto Socioambiental (2004 a 2005).


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