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O aiatolá Gorbatchov
OTAVIO FRIAS FILHO
Começou a desmoronar o fundamentalismo islâmico? A questão é decisiva pois o Islã, desde o colapso soviético, assumiu a posição de principal força organizada contra o modelo
ocidental. Bem ou mal, a maioria dos
países do Oriente Médio já está reconciliada com o Ocidente. E agora o Irã
dá sinais de que começou a viver a sua
"revolução de veludo".
Mohammad Khatami, o presidente
eleito domingo, é tradutor da "Democracia na América", clássico de
Tocqueville sobre o sistema americano. Foi ministro da Cultura durante
os dez anos em que se gestou o milagre do cinema iraniano, mania intelectual em todo o mundo. Sua base
eleitoral são os jovens e as mulheres.
Até na aparência ele discrepa do panorama bíblico da cúpula que controla a
Revolução de 1979. Sem barba e turbante, Khatami passaria por algum
executivo de multinacional ou professor universitário. Sorridente, como
Gorbatchov, ele ensaia a coreografia
cautelosa de quem se prepara para
grandes saltos.
O Irã vive aquele momento de equilíbrio em que a democracia desponta
ainda sob eufemismos, como a "glasnost" na falecida União Soviética. O
regime mantém o controle: segundo o
"Herald Tribune", Khatami estava
entre os 4 aspirantes autorizados pelo
Conselho dos Guardiães a concorrer,
numa lista de 238 nomes!
Uma auto-reforma, portanto, manobra sempre arriscada na condução
dos regimes ditatoriais. Foi tentada,
para ficar em exemplos menos remotos, pelo franquismo na Espanha e pelo salazarismo em Portugal, sem sucesso. Mesmo no caso brasileiro, tudo
o que se conseguiu foi amortecer a
queda do regime militar.
Não se sabe como um país cai na democracia. A população vive de crenças mais vitais do que essa superstição
de que metade mais um formam uma
cifra mágica. Todos projetam o seu
cego interesse na democracia e poucos admitem, com Rosa Luxemburgo,
que "a liberdade é sempre a liberdade
de quem pensa diferente".
No curso da auto-reforma, um incidente qualquer leva o regime a engrossar, mas os comandos já não respondem, o que serve de senha para
um deslanche oposicionista que rompe o balanço das forças e joga o poder
no meio da rua. Ninguém consegue
exercê-lo sozinho; ao prolongamento
dessa incapacidade chamamos democracia.
Como forma social, a democracia
requer uma trama de forças contraditória o bastante para que o sistema
não funcione sem que elas se coordenem, restringindo-se mutuamente. A
diversificação de mercado, no Islã ou
na China, tende a sabotar o centralismo, acentuando a sua inoperância
crescente em meio à complexidade.
O ponto de saturação, porém, é moral, quando até a repressão descrê do
que é chamada a fazer. Aí a política
reaparece, por um lapso de tempo,
com face humana. Para alcançar essa
graça, Khatami precisa de um gesto,
que no seu caso terá de ser a revogação do bárbaro decreto contra a vida
do escritor Salman Rushdie.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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