São Paulo, quinta, 29 de maio de 1997.



Texto Anterior | Índice

Guilherme

Guilherme Figueiredo reconciliava a gente com a humanidade, mostrando que nem tudo estava perdido


PEDRO BLOCH

"Pra você ler na viagem."
E o velho general Euclydes Figueiredo me entregou (deslocando-se até o distante Galeão) um livro primoroso, caro como edição e conteúdo, grato por eu aliviar seu castigante zumbido mais com palavras que com medicamentos, que, naquele tempo, tinham efeito duvidoso. E em cada viagem o ritual se repetia. Não sei como ele adivinhava as minhas partidas para congressos internacionais. O mais tocante é que, mal me entregava o volume, saía logo, esquivando-se dos agradecimentos.
Guilherme viveu com ele prolongado exílio e dele herdou esses requintes humanos. Deixou-nos suas memórias: "A bala perdida". Passamos dias e mais dias a recordar episódios e as incríveis coincidências que tanto marcaram nossas vidas.
Diariamente, nossos telefones nos uniam para diálogos infindáveis. E eu ouvia o quanto esse fabuloso amigo tinha de cultura verdadeira, daquela cultura tridimensional que vem do sânscrito "kult". Sabia tudo de tudo. Poliglota, devorador dos livros mais impossíveis e profundos, conversador sem igual em humor e sabedoria, riso à flor dos lábios, cordialidade permanente, dono de uma linguagem rica e só sua, transformava cada tarde em que ele falava e eu ouvia em espantosa erudição. Vivia cercado de música de todos os lados. Sem conhecer na prática nenhum instrumento, dissecava qualquer obra, sabia ouvir como um grande maestro Bach ou Mozart, Stravinsky ou Prokofiev, de Copland a Béla Bartók, de Villa-Lobos a Debussy. Saltava de um para outro com a maior desenvoltura, o que o levou, até, a escrever uma "História da Música". Respirava ar e música. Mais música.
Éramos, os dois, irmãos de Mignone, e ambos tínhamos sido provocados pelo maestro a escrever textos para óperas, que ele compunha com uma fluência e uma brasilidade únicas. Guilherme teve a sua. A minha, ainda inédita, é um musical infantil para qualquer ida de ("Godó, o bobo alegre"), com quase 20 composições de Mignone, que ninguém ainda conhece. Algumas delas são obras-primas.
Mas nossas grandes coincidências se multiplicavam principalmente nas peças de teatro: "A Raposa e as Uvas" (dele) e "As Mãos de Eurídice" (minha), as duas peças nacionais que mais correram mundo, por todos os continentes e em idiomas e dialetos impossíveis. Fomos a muitos países para ver as encenações. No Japão, a princesa lia, em aula, "A Raposa e as Uvas". Na China, espectadores acompanhavam em livro o espetáculo que transcorria, conferindo teatro e emoção. Guilherme era consagrado em todos os cantos.
Um dia, na China, jantamos ao lado de Mao Tse-tung, Chou En-lai e Khruschov. Fazíamos a cobertura das festividades da revolução. Guilherme, diante daquela realidade quase absurda, só dizia: "Quem é que vai acreditar quando a gente contar isso?" Em Moscou, quase provoco uma revolução, nos bastidores da "Raposa", quando, como costumamos fazer no Brasil, beijei nas faces a estrela da companhia. Não era hábito. A amizade com Guilherme era tanta que, quando se estreou no Rio "A Raposa e as Uvas", a comemoração do sucesso foi em minha casa. Seu êxito me tocava como se fosse meu.
Quando na Argentina se comemoravam os milhares de representações de "As Mãos de Eurídice", surgiu, simultaneamente, o estrondoso êxito da obra de Guilherme, que eu, de brincadeira, sempre chamei de William, em função da tradução que lhe haviam feito para Guillermo. À noite, nas homenagens carinhosas que recebemos, estavam os exilados Alejandro Casona, Miguel Ángel Asturias (Prêmio Nobel), Jacinto Grau, Pitigrilli e não sei quantas celebridades mais, que ouviam fascinados Guilherme, com sua verve sem fim, com sua espantosa cultura, que parecia conhecer mais do que eles as obras que haviam criado.
Na mesma ocasião nossas peças saíram publicadas, no mesmo dia, pela mesma editora.
Mas as coincidências prosseguiam através dos anos. Agora mesmo, por ocasião do centenário Brasil-Japão, saiu edição primorosa com as duas peças. Quando a "Provincetown Playhouse", de Nova York, escolheu duas peças para um espetáculo, que peças calculam que elegeram? "Um Deus Dormiu Lá em Casa" e "Os Inimigos Não Mandam Flores". No livro "Teatro Moderno", do maior crítico de Estocolmo, lá estamos de novo, como únicos representantes do teatro latino-americano.
"As Mãos de Eurídice" foi escolhida como tema de exame e espetáculo pela "Royal Academy of Dramatic Arts" e ganhou o primeiro lugar em concurso de literatura (tese), em Bruxelas. "A Raposa e as Uvas" não perdia vez. Os prêmios se acumulavam em toda parte.
Quando Guilherme soube que Ingmar Bergman aprovara duas peças minhas para o teatro que dirigiu em Malmö, "A Raposa e as Uvas" era vivida, ao mesmo tempo, na Bulgária, na Romênia, na Hungria etc.
Guilherme sempre se manteve digno e honesto em tudo. Proibiu que suas peças fossem representadas no Brasil quando seu irmão foi presidente. Não queria vantagens nem bajulação. Como reitor da Uni-Rio, fez dos cursos e da biblioteca centros de qualidade maior.
Condecorado, ovacionado, querido, admirado, tinha em Alba, a mulher que foi pianista premiada, uma companheira sem par. Dois filhos de valor: Luís Carlos e Marcelo.
Fato recente: não entrarei em detalhes para contar que, na partida de Darcy Ribeiro, já sem poder respirar e andar direito, Guilherme se sentou à entrada do São João Batista e esperou, gelado de emoção, a passagem do cortejo, que durou horas. Darcy merecia!
Um episódio de quando era adido cultural em Paris e promovia eventos e difusão cultural com um entusiasmo fabuloso: casal de um país do Leste Europeu, sem conhecê-lo, apelou para ele, para poder escapar de seu país. Queriam vir para o Brasil, mas precisavam ter parente por aqui. Passam dias, e Guilherme me avisa, feliz da vida: "Sabe, Pedro? Consegui. Você agora tem novos parentes. Dei teu nome". Guilherme era um ser único. Reconciliava a gente com o resto da humanidade, mostrando que, apesar de tudo, nem tudo está perdido neste mundo do absurdo e da propaganda.

Pedro Bloch, 83, escritor e médico, é autor de "As Mãos de Eurídice", "Os Inimigos Não Mandam Flores" e "Dona Xepa", entre outras peças de teatro e livros.



Texto Anterior | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã