São Paulo, quarta-feira, 29 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A ciência em risco

GLACI ZANCAN

As medidas tomadas pela área econômica do governo federal, cortando em aproximadamente 45% o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia, exigem que a sociedade tome conhecimento dos riscos de tal medida.
Nas últimas décadas, o país mudou de patamar em ciência no conjunto das nações, situando-se entre as 20 mais produtivas. Resta, no entanto, um descompasso entre a modesta capacidade científica instalada nas universidades e a minúscula capacidade de inovação no parque produtivo.
A comunidade científica sempre defendeu a adoção de políticas públicas capazes de propiciar o crescimento harmônico dos dois braços da área de C&T (ciência e tecnologia), indispensáveis para sustentar o crescimento econômico e social estável. A falta de centros de desenvolvimento tecnológico é uma decorrência de ser o parque industrial majoritariamente multinacional, com centros de pesquisa e desenvolvimento em outras regiões do mundo.
Ao planejar o futuro da área de C&T, nunca se desconheceu que o cobertor é curto e que, portanto, o equilíbrio entre as formas de fomento e entendimento entre as agências financiadoras é de vital importância. É preciso olhar para essa área com uma visão ampla e na perspectiva de longo prazo, tendo clareza de que a ciência cresce onde existe ambiente apropriado, resultante da reunião de experientes pesquisadores e jovens criativos com financiamento suficiente para mantê-los trabalhando.
Ao longo dos anos, os pesquisadores se habituaram a um permanente malabarismo para sobreviver em razão das constantes mudanças de programas de fomento, decorrentes da "criatividade" dos gestores que se sucedem no comado das agências. Mesmo essa imensa capacidade de adaptação não evita que volta e meia apareçam casos de morte anunciada.
O surgimento dos Fundos Setoriais, sem dúvida uma forma criativa de financiamento, voltada para o fomento da inovação em redes de conhecimento definidas, foi bem recebido, pois se buscava alavancar um setor extremamente deficitário.
A criação do Fundo de Infra-Estrutura foi a maneira que se encontrou para retornar ao antigo sistema de apoio institucional da década de 70. Só que o volume de recursos é claramente insuficiente, a ponto de gerar novas tensões e preocupações, ampliadas pela falta de diálogo entre os diferentes atores envolvidos no processo.


Nunca é demais alertar que em ciência é difícil construir e manter escolas, mas é muito fácil destruí-las


Mesmo com tantos cuidados, havia (e ainda há) a preocupação de que a nova forma de fomento fosse resultar em cortes nos investimentos governamentais em fomento do CNPq, inclusive em programas considerados prioritários, como é o caso dos Núcleos de Excelência (Pronex).
Políticas são implementadas através de orçamentos e de sua liberação sistemática pela área econômica. A análise dos orçamentos dos últimos anos mostra que faz sentido toda essa preocupação com os cortes. O risco é real. O orçamento do CNPq tem se mantido no mesmo patamar, apesar da inclusão de novos programas e da desvalorização do real. A execução orçamentária dos primeiros quatro meses deste ano mostra que praticamente apenas os recursos de bolsas vêm sendo liberados.
A comunidade espera por definições claras de como ficará o financiamento da pesquisa, principalmente naqueles grupos que não contam com suporte das agências estaduais ou não se encaixam em redes de conhecimento definidas nos Fundos Setoriais.
O contingenciamento anunciado, retirando quase a metade do orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia, será catastrófico. Estará colocando em risco todo o sistema de C&T, além de anular todo o esforço feito na reformulação da área.
Nunca é demais alertar que em ciência é difícil construir e manter escolas, mas é muito fácil destruí-las quando não lhes são dadas condições mínimas de sobrevivência e reposição.


Glaci Zancan, 67, professora titular de bioquímica da Universidade Federal do Paraná, é presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Eduardo da Rocha Azevedo: A próxima vítima
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.