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São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

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LÍNGUA E PODER

"A terapia teve um efeito idiossincrático com prognóstico favorável em caso de pronta supressão". Essa frase, enigmática para os não-iniciados nas sendas médicas, não significa muito mais do que "o remédio teve efeito contrário, mas não causará problemas se for suspenso logo".
Esse é um dos exemplos de jargão que consta da reportagem sobre linguagens técnicas publicada na semana passada no caderno Sinapse. O jargão é de fato inevitável, mas isso não significa que ele deva ser empregado em todas as ocasiões. Com efeito, toda profissão, do telemarketing à física de partículas, acaba por desenvolver um vocabulário específico, muitas vezes impenetrável para o leigo. Não apenas neologismos são criados como palavras comuns podem ter sua significação alterada.
Em alguns casos, trata-se de uma necessidade. O jargão, no mínimo, economiza palavras, concentrando carga informativa em termos específicos. Quando um médico fala em "miocardiopatia idiopática", ele está na verdade dizendo um pouco mais do que apenas "problemas cardíacos de causa ignorada". No subtexto, um outro médico compreenderá que o paciente sofre de moléstia cardíaca de origem desconhecida e para a qual já foram descartadas as causas que mais comumente provocam doenças do coração.
Em determinadas áreas científicas, os próprios objetos de estudo não passam de jargão. É o caso, por exemplo, da linguística, com seus morfemas, sintagmas e lexemas, e da física de partículas, com seus quarks, glúons e léptons. No limite, sem o jargão, os fenômenos estudados não podem nem ser enunciados.
Reconhecer a importância e a necessidade do jargão em certas situações não significa chancelar seu uso indiscriminado. Um médico ou um advogado que se dirijam a seus clientes em linguagem técnica incompreensível estão, na verdade, atendendo muito mal ao consumidor, que deve ter, em todas as ocasiões, acesso a uma explicação completa de sua situação em linguagem acessível.
Infelizmente, as coisas nem sempre se passam assim. Desde que o mundo é mundo, profissionais de uma determinada área tendem a unir-se para manter sua arte impenetrável para o público em geral e, assim, aumentar seu poder. Não foi por outra razão que os escribas do antigo Egito complicaram desnecessariamente a escrita hieroglífica: era uma forma de conservarem e até de ampliarem sua posição hierárquica. Os tempos e as ciências mudaram, mas o princípio de complicar para valorizar-se permanece em vigor.
Não devemos, é claro, ser ingênuos e acreditar que poderemos promover a plena igualdade através da língua. Democracia é, antes de mais nada, a arte de negociar, de aplicar o bom senso na solução de problemas. Nesse sentido, o bom profissional é aquele capaz de comunicar-se no melhor jargão com seus colegas, mas que consegue, sem grandes perdas, fazer-se entender pelo leigo. Os que ostensivamente abusam da linguagem técnica tendem a ser os menos capazes, os que mais precisam afirmar-se para não perder poder.


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