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São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O ciclo vicioso das reformas

MARCO MACIEL

Se fizermos um balanço dos desafios institucionais brasileiros não resolvidos e que inquietam a nação, pondo em risco a própria coesão social, a governabilidade e a eficiência das instituições, vamos verificar que muitas vezes focalizamos as questões marginais, quando deveríamos nos centrar nas transcendentais.
Enquanto, por exemplo, discutimos uma reforma que sempre tentamos, mas jamais consumamos, como a do Judiciário, andamos em círculo em torno da roda, discutindo se o controle das funções da Justiça deve ser externo ou continuar interno. Essa parece-me a maneira mais eficiente de caminhar sem conseguirmos sair do lugar, pois estamos trocando a substância pela fórmula. Assim como a Constituição do país não se consuma num conjunto de leis que dão funcionalidade às suas disposições, também a "Constituição do Judiciário" não se esgota na Lei Orgânica da Magistratura, mas se completa com os códigos de Processo Civil e de Processo Penal, até aqui remendados, mas não reformados, que lhe dão organicidade e eficiência.


Devemos ter sempre em mente que a organização do Estado é tão relevante quanto a organização do governo


Como é que se admite, na questão da segurança pública, que a criminalidade tenha se instalado nos mais altos escalões dos aparelhos preventivo e repressivo de que dispõe o poder público, de forma tão intensa quanto generalizada? Não se trata de controle externo ou interno, mas de incapacidade de autocontrole. Ainda nesse capítulo, não é crível que o sistema penitenciário tenha se tornado presa tão fácil daqueles que deveriam estar sendo punidos e, impunemente, continuam a exercer e a comandar as atividades criminosas que deram origem às suas punições. É intrigante que em nossa tão discutida Federação a simples custódia de um apenado que devia temer o poder do Estado faça o Estado temer ante sua simples presença.
Não devemos nos espantar com o fato de que, no Brasil, virtualmente todas as atividades sejam passíveis de cair sob o domínio da delinquência e dos delinquentes. O que deve nos estarrecer é a continuidade das práticas delituosas sem que os mecanismos de controle de que dispõe o Estado sejam capazes de detectá-las. Ou as que vêm sendo assestadas sistemática e ininterruptamente contra a Previdência Social. Ou, ainda, como se tornaram possíveis aquelas outras enquistadas nos aparelhos fiscais da União e dos Estados.
O que exige controle, seja ele interno ou externo, não é este ou aquele Poder. A velha questão de quem fiscaliza o fiscal, em relação aos Poderes do Estado, diz respeito exatamente ao tema dos sistemas de governo e à questão federativa. Entretanto, tradicionalmente, a discussão sobre sistemas de governo no Brasil tem se restringido às preferências dos que defendem o presidencialismo, adotado pela Constituição de 1891, e os que pleiteiam o parlamentarismo, que teria sido prática no Império, entre 1824 e 1889, e na efêmera experiência entre 1961 e 1963. Já a questão federativa tem sido muito mais invocada do que propriamente debatida.
A doutrina constitucional brasileira é rica no que se refere ao debate sobre sistemas de governo. Porém, a meu ver, esse é um debate superado, porque a opção por qualquer das duas alternativas não pode ser dissociada das variáveis que as condicionam: o sistema eleitoral e o sistema partidário. Ou seja, é preciso termos presente a que presidencialismo e a que parlamentarismo estamos nos referindo sempre que aludimos a sistemas de governo. A equação, aparentemente bem resolvida, segundo a qual o Legislativo legisla, o Executivo governa e administra e o Judiciário julga foi uma solução ao mesmo tempo criativa, que dividiu as funções de Estados das funções de governo, e um modelo que tanto serve às diferentes formas de governo como às duas formas de Estado, unitário de um lado, federativo do outro.
Na medida em que evolui a doutrina interpretativa do princípio de Montesquieu, contudo, não podemos nos esquecer de que Poderes separados, independentes e soberanos de qualquer país não podem conviver sem o seu corolário essencial, que é o da harmonia. É sempre bom lembrar que os Poderes devem ser independentes, mas devem, igualmente, ser harmônicos. Nisso consiste, hoje, a relevante questão do relacionamento e do equilíbrio entre os diferentes centros de poder, quer nos Estados unitários, quer nos modelos federativos, quer no parlamentarismo, quer no presidencialismo, quer nas Repúblicas, quer nas monarquias.
Hoje, ninguém hesitará em dizer que, nas sociedades de massa, como a China, EUA, Índia, Indonésia, Rússia, Paquistão e Brasil, o desafio não reside no relacionamento entre Poderes, mas em como harmonizar a multiplicidade de poderes desse complexo que Robert Dahl chamou de "poliarquia". Na questão da segurança pública, por exemplo, quem poderá supor que é possível, com a complexidade da vida contemporânea, coibir crimes cuja materialização transcende as fronteiras nacionais, atribuindo sua repressão exclusivamente aos Estados ou, privativamente, à União?
Por isso devemos ter sempre em mente que a organização do Estado é tão relevante quanto a organização do governo. E, assim como a reforma política não pode se exaurir na simples mudança de pontos específicos da legislação eleitoral e partidária, a questão federativa não pode se consumar como a discriminação de responsabilidades e competências. Elas não podem ser excluídas da União, dos Estados e dos municípios. É necessário serem compartilhadas, e para todas deve haver o que certos especialistas chamam de "reserva de domínio de poder". Se um dos entes federativos falha na consecução de algumas de suas responsabilidades, é indispensável a existência de um mecanismo que, não implicando intervenção, permita aos demais supri-las, pois, nesse caso, a única vítima é sempre a sociedade.

Marco Maciel, 61, é senador pelo PFL-PE. Foi vice-presidente da República (1995-1998 e 1999-2002), ministro da Educação (governo Sarney) e governador de Pernambuco (1978-82).


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