São Paulo, quarta-feira, 29 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

DNA Brasil: um "Davos Alegre"

RICARDO SEMLER

Resolvemos seqüestrar 50 brasileiros notáveis. Por três dias, num bom hotel e com suplícios moderados. Alguns poucos escaparam do cativeiro, o resto se intrigou.
Refiro-me ao evento que lançou o Instituto DNA Brasil, uma iniciativa ousada que visa parar para pensar o Brasil do futuro. Aquele futuro distante, décadas à frente. No pressuposto de que uma parte dos problemas do Brasil de hoje se deve a uma elite míope, que não anteviu, não procurou evitar e nem sequer entendeu os defeitos de um país que não é pensado a fundo.
Houve quem achasse que essa reunião de algumas das melhores cabeças do país estaria fadada a um encontro babelesco. Mas hoje temos o resultado: a nota dada ao evento pelos participantes é de 9,1. E, como disse um deles, o prof. Adib Jatene, à mídia: "No começo achei que era uma iniciativa pretensiosa e complicada; na medida em que fui me envolvendo, vi que era realista e necessária".
Esse envolvimento se deu por caminhos pouco ortodoxos. Era evidente que processos clássicos de debate, platéia e painéis levariam apenas a um desfile de posições calcificadas. Por outro lado, um processo inovador seria recebido com grita, especialmente por intelectuais e luminares acostumados às grandes frases incontestes e ao debate ascético -que elimina o afeto.
Assim, começamos dando o tom de que as couraças teriam de ser perfuradas ou despidas: sugerimos uma "passeggiata" pelos jardins, para que pares -desconhecidos um do outro- relatassem suas infâncias e, depois, apresentassem a pessoa com base nisso. Foi um amplo sucesso, causando mais do que uma lágrima ao ouvirmos pares tão improváveis, como Regina Casé e o coronel Cavagnari, Dorothéa Werneck e Miguel Reale, abrirem seus corações.


Os 46 convidados debateram, com paixão, assuntos como "Educar, Para Quê?" ou "Quem Manda em Nós?"


Com esse início, os 46 convidados escolheram salas temáticas e debateram, com paixão, assuntos como "O Brasil do Por Fora", "Educar, Para Quê?" ou "Quem Manda em Nós?". As salas foram todas cinegrafadas; o evento foi feito em paralelo com inúmeras ONGs; escolas recebiam o sinal ao vivo; Terra, iG, Radiobrás, TV Cultura e Canal Futura transmitiam flashes; e os principais jornais e revistas do país tinham lá alguns de seus melhores jornalistas.
Ex-ministros como Celso Lafer debatiam com a Isis Lima, de 17 anos, líder juvenil hábil e calma, enquanto o Aziz Ab'Saber, de 80 anos, tomava posições enérgicas. João Pedro Stedile discutia com sua nêmesis, Luiz Suplicy Hafers. Antropólogos, psiquiatras, líderes comunitários (entre eles a ministra Marina Silva e o padre Julio Lancellotti), cientistas sociais como José Arthur Giannotti, Hermano Vianna e Olgária Matos tomavam a palavra, às vezes dizendo algo que eles mesmos nunca haviam se ouvido falar. Os discursos alongados eram evitados por um jovem músico que tocava clarineta ou violino depois de cada minuto e meio, e a quase totalidade dos convidados aceitou exercer uma incômoda síntese.
Houve também um exercício estressador, provocando proposições e demonstrando que uma metodologia de procura de inteligência coletiva não é ainda conhecida. O que resulta num país em que os governantes, de qualquer espectro, abandonam as milhares de horas de estudo e debate no primeiro dia de governo. "Esqueçam o que escrevi e falei" são comuns a quase todos os partidos.
O método heterodoxo, que colocou os 46 participantes sentados numa orquestra sinfônica, tendo na regência Stedile, que infiltrou personagens como falsos tetraplégicos, mendigos e engraxates para observar as reações do "povo", que inventou o "cantor de churrascaria", em que cada um tinha dois minutos para dar o seu "blá" durante refeições, gerou uma enorme energia construtiva.
Claro, nenhum consenso foi gerado, e teria sido absurdo imaginá-lo possível. Mas o sucesso retumbante foi o aceite, por mais de 40 deles, de serem membros do Conselho de Fundadores do Instituto DNA Brasil, que ora abre suas portas. Seu primeiro produto, o Índice DNA Brasil, já é novidade: mede o Brasil de hoje como porcentagem do Brasil desejável, mas realista, dos 46 que nos deram suas intuições. Suas visões das sete dimensões e 24 índices que foram aglomerados num só resultaram num Brasil que é metade do que esse coletivo gostaria de ver.
A partir de agora, sob a gestão do Caio Túlio Costa, provocará encontros e reflexões regionais e setoriais, auscultará a sociedade e os profundos pensamentos estratégicos e até poderá promover, além do evento anual que veio se apelidando de "Davos Alegre" -por juntar o melhor de um fórum econômico com o de um fórum social-, um evento-espelho em que a exata demografia dos brasileiros será representada: em termos de gênero, geografia, renda e etnia. Algo inusitado. Tanto quanto o DNA Brasil, que já nasce irrequieto, indisposto a fazer tudo como dantes.

Ricardo Semler, 45, empresário, presidente da Semco, é professor convidado do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e autor de, entre outros livros, "The Seven-Day Weekend" (Portfolio).


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