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TENDÊNCIAS/DEBATES
Cadê nossa diversidade religiosa?
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
A torto e a direito, a gente se flagra
celebrando, brasileiros que somos,
a diversidade cultural de nosso país.
Um pouco mais raramente, mas também com bela frequência, ouvimos intelectuais brasileiros comentando com
agrado nossa diversidade religiosa.
Quando o contexto da conversa, ou da
reflexão, é o "entrelugar" da cultura latino-americana, as auto-referências multiculturais beiram as raias do ufanismo
embevecido. Basta, porém, o brasileiro
parar um pouco e olhar à sua volta para
quase só ver... cristãos. Outrora quase só
se viam católicos, mas hoje se vêem
também, por toda parte, os evangélicos.
Cadê os outros? Cadê a alteridade cultural em matéria de religião?
Cadê nossa badalada diversidade religiosa? O gato comeu.
Na tabulação avançada do Censo Demográfico de 2000, divulgada em maio
de 2002, nosso pluralismo religioso aparece bem desmilinguido: quase binário.
Três décadas atrás, os três maiores grupos religiosos eram os católicos, os protestantes e os espíritas. Hoje, os três
maiores contingentes a figurar nas tabelas de religião do Censo são os católicos,
os evangélicos e os sem religião. Se você
retira os sem religião desse pódio, sobram somente aqueles que se declaram
ou católicos ou protestantes -ou seja,
os cristãos em sentido estrito.
É com grandes números para os cristãos e reduzidas contas de somar para
os outros -quando não de subtrair-
que o Censo vem mostrar que a diversidade religiosa brasileira, hoje, é quase
nada. Apesar de cantada em verso e
prosa na imaginária exuberância (neo)
amazônica de suas espécies e subespécies religiosas (formações nativas ou
transplantadas, tão antigas essas quanto
as caravelas e os piratas, ou tão recentes
quanto a web, recém-chegadas de longe, de perto, de dentro, por dentro, recém-fundadas umas e repropostas outras, revisitadas, repaginadas que sejam,
sincréticas muitas vezes, mas não todas,
antropofagicamente híbridas ou não,
neolocais, substitutas, devolutas, vigorosas ou declinantes), a variedade de religiões no Brasil, no fundo, é muito rala;
bem mais rarefeita e bem menos resistente aos grandes empreendimentos religiosos pós-estatais do que a gente imagina ou acha que consegue enxergar.
Vejamos mais de perto o que traz o
Censo: 73,8% dos brasileiros são católicos, 15,4% são evangélicos e logo a seguir vêm os sem religião, com 7,3% de
autodeclaração. Olhando para a soma
de 96,5% que isso dá, pode-se constatar,
não sem algum espanto, onde diabos foi
parar aquela fabulosa diversidade religiosa de nossa religiosíssima população: numa apertada faixa de 3,5%. Todas as outras modalidades religiosas
que não as católicas e evangélicas se
acotovelam nessa faixa, que é estreitíssima. Claro que são muitas as outras religiões citadas pelos entrevistados, e o
Censo as discerne nominalmente, mas
nelas se congregam populações muito
pequenas, para não dizer ínfimas.
Os espíritas comparecem com apenas
2.337.432 adeptos, ou 1,38% da população. E estão crescendo. Ao contrário dos
kardecistas, as religiões afrobrasileiras
estão diminuindo: no Censo 2000 seus
seguidores são só 571.329, ou apenas
0,34% dos brasileiros. Não é incrível?
Do alto de seus oligopólios e prerrogativas, o espectro do monoteísmo ainda ronda nossos confusos destinos
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Os umbandistas são pouco mais de
430 mil e os candomblecistas não chegam a 140 mil em todo o país. Não é surpreendente? Os budistas são 245.870
(0,15%) e as outras religiões orientais
(Seicho-No-Iê, Messiânica, Perfect Liberty, Shinto, Bahai...) têm 181.579 seguidores (0,11%). Os esotéricos são
67.288 (0,04%) e os hinduístas, 2.979
(0,00%). Os de religião judaica são
101.062 (0,06%) e os muçulmanos, só
18.592 (0,01%). As religiões de origem
brasileira que o IBGE classifica como
"tradições religiosas indígenas" -Santo Daime, União do Vegetal, A Barquinha e outras- possuem pouco mais de
10 mil seguidores declarados (0,01%).
Se lermos a lista de religiões que aparecem no Anexo 1 do Censo 2000, ficaremos com a certeza de sermos um país
não só plural, mas muito sortido em
matéria de religião. Só que essa variedade que consta da lista se acha distribuída
entre menos de 6 milhões de uma população total de 170 milhões de brasileiros.
E se, após conferir suas míseras somas, tornarmos a observar os três grandes grupos no pódio, por efeito do contraste a ficha vai cair e nos daremos conta de que os católicos ainda são mais de
124 milhões e os evangélicos, mais de 26
milhões. Ou seja, as duas grandes religiões representadas no pódio englobam
mais de 150 milhões! Dá para comparar
com os... "outros"?
Vivemos, na verdade, num país "90%
cristão" (89,2%). Isso quer dizer que, do
alto de seus oligopólios e prerrogativas,
o espectro do monoteísmo ainda ronda
nossos confusos destinos pesadamente.
Eu bem que gostaria, neste fim de ano
da transição, de dar a todos a boa notícia sociológica de que, no Brasil atual, as
pessoas têm muito mais chances do que
nunca de aderir às mais diferentes concepções do divino. Oxalá fosse mesmo
verdade que no cotidiano das famílias já
fosse menos insustentável a leveza do
conviver pós-tradicional de mãe católica reconvertida pela Renovação Carismática e filha jovem convertida ao budismo ou à União do Vegetal -encontros culturais que fossem, sem medo,
confrontos culturais, fatos novos e densos que desdobrassem no mundo da vida de muitos mais aquilo que a sociologia contemporânea, pelo avesso, tem
chamado de "destradicionalização".
Mas não, nossa diversidade religiosa
ainda é balbuciante. Oxalá nossos corações pudessem ouvi-la, em seus primeiros, pianíssimos acordes, dizer aos nossos corações que, calma, estamos só no
começo de um longo processo de desfiliação geral que um dia há de dar, se aos
deuses em luta aprouver, numa grande,
maravilhosa dispersão.
Antônio Flávio Pierucci, professor livre-docente do Departamento de Sociologia da USP, é secretário-geral da SBPC (Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência).
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