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São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Tecnologia aeroespacial e Papai Noel

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Muitos se surpreenderam com os termos do acordo entre Brasil e EUA sobre salvaguardas tecnológicas relativo ao uso do Centro de Lançamento de Alcântara. Parecerão, por certo, muitas das salvaguardas excessivamente defensivas e intransigentes. Todavia a surpresa se desvanecerá em face de um pressuposto que é substrato essencial da cultura americana, mas não da brasileira. Refiro-me à convicção de que a tecnologia é a ferramenta básica para a competição, seja ela de natureza puramente comercial, econômica ou bélica.
O americano está convencido de que a posição dominante que ocupa atualmente no cenário mundial é devida principalmente à sua supremacia tecnológica. E a continuidade dessa condição exige duas estratégias, além da realização de pesquisas: em primeiro lugar, a preservação da própria tecnologia, ou seja, a restrição ao acesso por outros países; em segundo lugar, obstrução sistemática ao desenvolvimento tecnológico dos demais países.
O acordo em questão reflete essas duas convicções do governo norte-americano. Não devemos, pois, estranhar os termos francamente restritivos nele contidos. O que podemos não entender é a aceitação dessas condições pelos brasileiros que as propuseram e as defendem.
A primeira objeção a ser feita se refere ao artigo III, segundo o qual qualquer uso de Alcântara é vetado (A) a países que estejam sujeitos a sanções estabelecidas pelo Conselho de Segurança da ONU, ou então (B) que não sejam "parceiros do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis". Tudo bem com a primeira restrição, mas os "parceiros" já são carimbados como agregados dos EUA, já estão pré-qualificados. Na prática, para aceitar outros usuários, o Brasil teria de obter o consentimento dos EUA.
A mais reveladora das restrições contidas nesse artigo III é a E, que estabelece que o Brasil não poderá utilizar recursos provenientes desse acordo "em programas de aquisição, desenvolvimento, produção, teste, liberação ou uso de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos não-tripulados" (quer no território brasileiro, quer em outros países). Ou seja, o Brasil fica impedido de usar recursos advindos da cessão de Alcântara em seu próprio programa aeroespacial. Concede o acordo que tais recursos possam ser aplicados no aprimoramento ou manutenção de aeroportos, estradas etc. que beneficiem diretamente os lançamentos de veículos etc. Ou seja, o Brasil está autorizado a aplicar os recursos provenientes do aluguel de Alcântara em benefício do programa dos EUA. Não são generosos esses nossos aliados?
Mas já devíamos estar acostumados; no contrato relativo ao Sivam há uma cláusula com o mesmo espírito. Lá está escrito que, caso um equipamento qualquer não puder ser fornecido por empresa americana, será permitido que seja adquirido em qualquer outro país, com a exceção do Brasil.


O objeto de repressão da política externa americana é o desenvolvimento de tecnologia de ponta no Brasil
Alguns por certo interpretarão a cláusula E como decorrente de uma política adversa ao desenvolvimento de tecnologia espacial no Brasil. Mas a restrição à participação da indústria nacional no projeto Sivam, que foi muito mais ampla do que o que se pode depreender do que foi mencionado acima, mostra que o objeto de repressão da política externa americana é o desenvolvimento de tecnologia de ponta no Brasil.
A arrogância contida no acordo vai ainda mais longe. Na cláusula F desse mesmo artigo é exigido que o Brasil firme acordos "juridicamente mandatórios com outros governos que tenham jurisdição e controle sobre entidades substancialmente envolvidas em atividades de lançamento". E que tais acordos "sejam equivalentes àqueles contidos neste acordo". Ou seja, o acordo a ser firmado com os EUA impede ao Brasil qualquer acesso a tecnologias. E qualquer outra forma de cooperação com outro país que seja fornecedor ou tenha acordo tecnológico com os EUA no setor aeroespacial terá de, necessariamente, sonegar ao Brasil o acesso à tecnologia. Ficamos livres para negociar o uso de Alcântara com Gana, Angola e Papua-Nova Guiné.
Em resumo, com a assinatura do acordo para lançamento de foguetes americanos em Alcântara, o Brasil fica impedido de realizar qualquer convênio no setor aeroespacial, inclusive para lançamento em Alcântara, com qualquer país que não seja membro de uma associação que pode mudar seus participantes e mudar suas regras sem discutir com o Brasil. Não é apenas uma questão de soberania, mas, antes de tudo, uma questão econômica e política.
Uma concessão que tem como objetivo a obtenção de recursos financeiros para o programa aeroespacial brasileiro não pode ter como cláusula a proibição do uso de tais recursos nesse mesmo programa. A sugestão de uso de artimanhas contábeis para contornar o impedimento é imoral.
Na eventualidade de outro país, que tenha qualquer relação com o programa espacial americano, comercial ou tecnológica, usar Alcântara, os recursos financeiros decorrentes não poderão ser aplicados em "foguetes ou veículos não-tripulados" nem nenhuma tecnologia poderá ser trocada com o Brasil no setor aeroespacial.
A conclusão é óbvia. Esse acordo enterra definitivamente o programa aeroespacial brasileiro. E é isso que os EUA querem. Mas não conseguirão alcançar esse objetivo, pois uma idéia salvadora surge da exuberante imaginação criadora do ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil. O Brasil pagaria o serviço de sua dívida externa com pesquisas (Folha, 2/12/03).
É verdade que os países desenvolvidos ficariam imensamente gratos em receber conhecimento como pagamento de nossa dívida. Poderíamos, por exemplo, desenvolver tecnologia de foguetes, de informática (Sivam), nuclear, farmacêutica etc. É uma proposta luminosa consoante com estes dias natalinos. Viva Papai Noel.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 72, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.


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