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Bolívia: a multidão constituinte
ANTONIO NEGRI e GIUSEPPE COCCO
O caráter inovador da revolução boliviana está no fato de o poder constituinte se inserir no sistema das fontes do direito
A BOLÍVIA constituinte de Evo
Morales e Álvaro García Linera concentra o conjunto dos
processos de transformação democrática que atravessam e revolucionam a América do Sul, seus movimentos sociais e as experiências dos
"novos governos" de Brasil, Argentina, Equador e Venezuela.
Em meados dos anos 90, quando as
lutas históricas em defesa dos "recursos naturais" (gás, minérios etc.) pareciam varridas pela derrota da marcha dos mineiros pela vida, um novo e
potente ciclo de movimentos as renovava, generalizando as lutas, para que
incluíssem os temas da água e dos serviços públicos. Isso levou ao desastre
as políticas neoliberais.
Os novos movimentos, dos quais
Evo é a expressão, não só renovaram
as lutas a favor do controle público do
fogo, do ar, da água e da terra, dando
nova força aos tradicionais projetos
de "independência" nacional e desenvolvimento, mas foram eles mesmos
fato inovador, que mostrou sujeitos
de tipo novo, em particular, a multiplicidade das comunidades indígenas.
A reivindicação do controle público
sobre recursos naturais se articulou
assim com a redefinição das próprias
características do Estado em direção
a um Estado pós-nacional, fundado
na multiplicidade dos sujeitos. Ainda
mais interessante, tudo isso visa também uma gestão democrática das empresas públicas: democracia e desenvolvimento devem andar juntos.
Depois da retórica neoliberal sobre
a função democrática da propriedade
e da empresa, estamos, na Bolívia, na
situação de poder experimentar uma
revolução democrática da economia.
O processo constituinte é a conseqüência de tudo isso: construção da
cidadania dos índios e construção dos
direitos pelos movimentos indígenas.
Na Bolívia, diferentemente da Venezuela e de modo mais eficaz, os movimentos são diretamente o motor do
processo de transformação do Estado. O caráter inovador da revolução
boliviana está no fato de o poder constituinte se inserir no sistema das fontes do direito. Ele não é apenas um
momento constitutivo (puramente
inicial) da legitimidade constitucional, mas fonte continuamente produtiva do direito. Disso derivam transformações fundamentais propostas
pela nova carta constitucional: a descentralização do Estado, as autonomias, o Estado plurinacional, a multiplicidade das instâncias de poder etc.
Por isso, o enfrentamento contra o
bloco do biopoder se concentra na
Constituinte. Ao mesmo tempo, o enfrentamento tem duas dimensões: de
um lado, o retorno do tradicional racismo neocolonial; de outro, o uso
"separatista" pelo bloco do biopoder
da abertura democrática representada pela proposta das autonomias.
O separatismo reintroduz assim a
privatização dos recursos naturais (é
exatamente sobre a renda dos hidrocarbonetos que se concentra o conflito). A chantagem separatista se dá,
pois, sobre duas questões estratégicas: a relação entre multiplicidade e
comum; e a relação entre poder constituinte boliviano e transformação latino-americana mais em geral.
A Carta aprovada pela Assembléia
Constituinte, a relação que nela se estabelece entre ingresso fiscal e direitos universais de cidadania -em particular com a Renda Dignidade- é
resposta clara: a singularidade das autonomias só poderá se desenvolver a
partir da construção do comum.
No que diz respeito às questões da
transformação continental, a resposta se define dentro do próprio processo sul-americano de integração.
Primeiro, as contradições internas
às relações com Brasil, Argentina e
Chile se desenvolvem no marco do
apoio diplomático dos novos governos desses países ao processo constituinte boliviano e do isolamento continental do separatismo quase fascista dos departamentos da "media-luna" (liderados por Santa Cruz).
Em segundo lugar, outro terreno
importante -que, pela novidade, exige cuidado e prudência- é o das decisões de Petrobras e BNDES de multiplicar os investimentos na Bolívia.
O que temos aí é realmente uma bela novidade: algumas multinacionais
não estão mais na contramão do processo de libertação. Uma boa notícia,
enfim, depois das muitas notícias
ruins que as multinacionais latino-americanas sempre nos deram.
Mas é preciso que a novidade continue como surgiu. Esses investimentos proporcionam, por enquanto, as
bases materiais para o desenvolvimento do projeto democrático boliviano, dando-lhe os meios que permitem negociar e evitar a guerra civil. O
Estado plurinacional é também pós-soberano: mergulhado nas dinâmicas
horizontais da interdependência.
ANTONIO NEGRI, 74, filósofo italiano, é professor titular
aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor
de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França). Entre outras obras, escreveu, em parceria com Michael
Hardt, os livros "Império" e "Multidão".
GIUSEPPE COCCO, 51, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras
obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL):
Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".
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