São Paulo, sábado, 30 de maio de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

NÃO

A difícil gestão das ambições

JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA

O BRASIL vem agregando peso na balança global. Apresenta-se como sócio não mais subalterno nas relações internacionais no início do século 21. O esforço logístico do Estado, a agregar sinergias empresariais, intelectuais e da sociedade organizada, é matriz mais ampla do seu novo modelo de inserção.
O desdobramento dessa realidade inédita é a difícil gestão da representação externa do país. Se ampliadas foram as responsabilidades nacionais na contribuição para a formação de normas e regras nos órgãos multilaterais, complexo é o sistema de indicação e votação de candidatos para tais instâncias. Misturam-se ambições pessoais e dificuldades táticas.
Há duas grandes formas de representação externa do Estado, embora outras sejam possíveis. A primeira reside na frente bilateral, área nobre gerida pelo chefe da representação ou delegação brasileira diante de outro Estado soberano, preenchida "in totum" pelos profissionais da diplomacia. Essa é a área da quase hegemonia dos embaixadores de carreira. Nem os militares conseguiram isso no seu tempo. O modelo é único, brasileiro, quase sem correspondência mundo afora. Possui elementos positivos, de continuidade e hierarquia, embora apresente vulnerabilidade corporativa.
A segunda frente é mais aberta e apresenta diferentes formas, na área multilateral e nos órgãos técnicos das agências internacionais. Aí o Brasil acumula ganhos e perdas, tanto nos órgãos político-estratégicos e econômicos quanto nas áreas culturais, educacionais e jurídicas.
Ganhou o Brasil em fins de 2008, com arrasadora votação, ao apresentar o candidato para a mais importante corte judicial da Terra. O professor Antonio Augusto Cançado Trindade, do Instituto de Relações Internacionais da UnB, elegeu-se, com intenso e reconhecido trabalho do Itamaraty, para a Corte Internacional de Justiça de Haia. Foi a maior votação já obtida por um candidato a juiz da corte em sua história quase centenária.
A vitória brasileira, no entanto, foi precedida de ambições domésticas que quase nos levaram a perder o posto. Mesmo lançada oficialmente a candidatura do professor, corriam paralelamente ambições desmedidas de candidatos brasileiros de última hora, a prejudicar o interesse nacional. Seu nome já havia sido aprovado por quase todos os grupos de países.
Era o homem certo, à altura do cargo, com representação na área do direito internacional e com serviços prestados à formulação dos direitos humanos no mundo. A opção do Brasil pela candidatura de um diretor-geral para a Unesco que se coaduna com os esforços que o país vem fazendo no tabuleiro afro-árabe é consequente. O Brasil relançou a política africana após longo período de silêncio.
Procura participar mais ativamente da paz no Oriente Médio. Esses dois elementos convergem para o compromisso assumido com a candidatura egípcia. E persiste a hipótese de que uma grande candidatura brasileira seja encaminhada em 2010 para órgão estratégico do sistema multilateral. Não podemos encaminhar todos ao mesmo tempo.
O assunto é, portanto, complexo e exige uma adaptação da nossa diplomacia e dos potenciais candidatos ao fato de o país ter crescido no mundo e ter interesses estratégicos maiores. Isso pode exigir recuo e cuidado no sistema de indicações.
Algumas sugestões podem ser encaminhadas em favor do Brasil, e não das ambições de candidatos em busca de glamour nos órgãos multilaterais. Primeiro, será preciso aperfeiçoar a pressão sobre o sistema de troca de votos no Itamaraty, tumultuado com o enorme número de candidaturas.
Segundo, deverá o Brasil construir melhor dialética entre as pretensões legítimas e um sistema prévio de análise de mérito, além de uma coluna de prioridades, sob o olhar constitucional do Congresso. Tomadas tais precauções, a representação externa do Brasil, nas diferentes formas, tomará um caminho mais racional e mais brasileiro, tradição nossa desde a ida de Epitácio Pessoa para a Corte de Haia até o desembarque na mesma corte do grande professor da UnB.

JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA, 49, doutor em história pela Universidade de Birmingham (Inglaterra), é professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. É autor, entre outras obras, de "Relações Internacionais - Dois Séculos de História".


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