São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma chance de proteger o futuro

KOFI ANNAN

Imagine um mundo com secas, tempestades e fome, com ilhas e regiões costeiras inundadas, onde milhões de pessoas morrem por causa da poluição do ar e das águas, enquanto outras buscam refúgio em lugares mais seguros e alguns ainda lutam entre si pelos escassos recursos naturais.
Em contraponto, imagine um mundo com ar e água limpos, com tecnologia, onde casas, transportes e indústrias estejam a serviço de toda a população, onde todos compartilhem os benefícios do desenvolvimento, da industrialização e de recursos naturais; imagine ainda que esta situação possa se sustentar de uma geração para a outra.
A escolha entre esses dois futuros cabe a nós.
Uma escola de pensamento afirma que todo desenvolvimento e crescimento econômico leva inexoravelmente ao apocalipse. Já outra aponta os problemas ecológicos, mas garante que espontâneas inovações tecnológicas virão nos salvar. Nenhuma das teses está correta. Nós, seres humanos, podemos até prosperar no futuro, como fizemos no passado, vivendo em harmonia com o meio ambiente, mas no presente estamos falhando.
Durante os dois últimos séculos, memoráveis conquistas em relação à qualidade de vida encorajaram alguns de nós a acreditar que não existiam mais limites para a ação do homem. Entretanto um grande número de pessoas não pensa dessa forma. O desejo natural de dividir a prosperidade até agora alcançada apenas entre uma minoria nos levou a um território inexplorado.
Não se pode mais imaginar que um quinto da humanidade pode viver indefinidamente na prosperidade, enquanto milhões de pessoas continuarão na mais profunda miséria, ou que produção e consumo possam destruir o ambiente. A questão não é opor meio ambiente ao desenvolvimento ou ecologia a economia, mas integrá-los.
Nós achamos que tínhamos encontrado um caminho dez anos atrás, com os acordos alcançados na Cúpula sobre a Terra, no Rio de Janeiro, mas o progresso está sendo mais lento do que esperávamos. Os países desenvolvidos, especialmente, não cumpriram as promessas feitas -tanto em relação à proteção do meio ambiente quanto à ajuda aos países em desenvolvimento. Os temas ambientais não são muito discutidos em debates sobre finanças e economia.
Agora temos uma nova chance: a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável acontecerá em Johannesburgo, África do Sul, em agosto. É claro que uma reunião não modificará a história, mas acredito que possa representar um ponto de partida, se conseguirmos traçar claros acordos e novas iniciativas em cinco áreas específicas:


O conhecimento sempre será a chave do desenvolvimento humano. E também a chave da sustentabilidade


1) Água. Para salvar mais de 3 milhões de pessoas que morrem todos os anos de doenças adquiridas por meio da água, devemos melhorar o saneamento básico. Já para resolver o problema de dois terços da população mundial, que sofrem com a escassez de água, é preciso diminuir o desperdício, principalmente na agricultura.
2) Energia. Para dar à população carente uma chance de sair da pobreza, precisamos providenciar energia adequada para 2 bilhões de pessoas necessitadas. E para assegurar que os avanços nessa área não sejam acompanhados por mudanças climáticas desastrosas, temos que obter energia renovável, implementar o Protocolo de Kyoto e acabar com perversos subsídios e incentivos fiscais, além de financiar pesquisas para encontrar alternativas.
3) Saúde. A fim de salvar os milhões de vidas que acabam a cada ano devido às precárias condições ambientais -águas poluídas, poluição do ar, lixo tóxico, insetos que transmitem doenças mortais-, devemos redobrar os esforços para criar um meio ambiente seguro, providenciar vacinas e tratamento e aumentar os recursos para combater as doenças tropicais, que atingem muitas pessoas e que afetam a economia dos países mais pobres.
4) Agricultura. Para assegurar que o aumento da produção de comida acompanhe o número de bocas a serem alimentadas, precisamos encontrar maneiras de fazer a terra descansar e de reverter o quadro de declínio da produtividade agrícola, em especial na África. Isso significa planejamento e administração da terra com mais responsabilidade, implementação da Convenção de Combate à Desertificação, da ONU, financiamento de pesquisas que resultem em boas colheitas mesmo na seca.
5) Biodiversidade. A fim de evitar a extinção de mais espécies, o que tem implicações devastadoras à vida humana, devemos combater a ilegalidade e as práticas insustentáveis da pesca e da derrubada de árvores; precisamos ajudar as pessoas que dependem dessas atividades para sobreviver a encontrarem outros caminhos para ganhar a vida; devemos financiar novas pesquisas sobre ecossistemas e biodiversidade.
Em todas essas áreas existem coisas que podemos fazer agora, com as tecnologias que temos à disposição, se tomarmos as providências e iniciativas certas. Mas a ciência nos trará muitas outras soluções, se investirmos em pesquisa. O conhecimento sempre será a chave do desenvolvimento humano. E também a chave da sustentabilidade.
Essa agenda pode soar como uma ambição impossível para alguns e ser uma desilusão para outros. Mas acredito que é o essencial, um começo possível, que deve ser implementado já, se quisermos preservar a esperança de uma vida decente para nossas crianças. E será sobre isso a reunião de Johannesburgo.


Kofi Annan, 64, economista ganês, é secretário-geral da Organização das Nações Unidas.



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